domingo, 24 de julho de 2016

Variações sobre um mesmo tema - a morte.

Há tempos que não presenciava a morte em seu decreto propriamente dito. Assim como a vida, o assombro que exerce sobre mim só faz traduzir minha ingenuidade por meio de clichês. Do meu vazio, baixo então meus olhos para o canto do cômodo.
Restam-me a afeição e a piedade pelas minhas vagas ideias. Reverencio, portanto, minha pueris hipóteses de compreender a morte de mãos dadas com  tudo o que vive e vice-versa.
Devido à inépcia das minhas impressões, arrependo-me de tentar dar-lhes algum formato. Como é assunto caro, difícil e diverso, não ouso neste texto - e tampouco nos outros - falar da morte nem da vida. E, para não me comprometer ainda mais, falo aqui sobre o que vi: da reação dos vivos - em seu geral -  diante da morte.


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Infelizmente, há alguns dias, participei do decreto propriamente dito da morte, ou seja, de um funeral. Ainda sob certo torpor do misto de tristeza e encantamento, tento amenizar meu pobre ser impressionado, externando as minhas mais recentes lembranças. Assim sendo, excetuando o protagonista, vi que os chamados vivos oferecem um pasmo à parte.

Observei que os vivos, diante do personagem apresentado sob novas e esperadas perspectivas, deixam despencar seus queixos - independentemente de manter ou não a boca fechada. Eles solidarizam-se com os enlutados sem, no entanto, conseguir esconder o arroubo arregalado de seus olhos diante do corpo imóvel, habitado há pouco tempo por morador conhecido. 
Se não estivesse como deitada casa vazia onde ninguém mais mora, creio que o morto prestaria suas sinceras condolências dado o espanto de os vivos presenciarem o futuro em que terão a mesma cara fria, rígida de pálida solidão.

Em situações como essa, tanto sentados como em pé, os vivos hesitam, escapando-se por assuntos absortos como a curiosidade de saber se as flores são artificiais ou naturais. Na esperança de algumas palavras, os vivos procuram por outros vivos. Trocando amenidades, lembrando de vivos em comum, contando piadas, talvez seja a forma encontrada para quebrar o voto de silêncio que, ao menos naquele momento, é sentenciado apenas ao personagem principal.

É chegado o momento final. Antes de fechar o caixão, vêm as despedidas. Mas, a mim mesma pergunto do que exatamente os vivos se despedem. Já que o que fitam é senão o desconhecimento daquele corpo a princípio mais afeito ao mistério...
Aquele que se deixava tacitamente cobrir pela transparência rendada do tule era diferente de tudo que um dia dele souberam.Não havia como evitar a errância dos olhos que novamente se perdiam em verticalidades.

Enquanto alguns jovens de skate não pararam para o cortejo que se dirigia para o cemitério logo à frente, um sol ocre iluminava a praça que mais parecia saída daqueles antigos álbuns onde se colavam fotos em branco e preto sobre páginas de negra cartolina. A ladainha discreta dos calçados logo cederia ao barulho da pá, ao canto dos  passarinhos.
Resoluta, uma enigmática mulher e seus três semblantes de bronze ouviam  a dignidade do esquife rapidamente friccionar contra o cimento do chão. Era a hora da descida ao subterrâneo da capela. Da brancura indiferente,  a cal sugeria-se insípida frente o corrosivo da dor do desfazimento. 

Tudo não passaria de intermitências de silêncio, se não fosse o desespero de um diálogo tentando suplantar o insustentável daquele momento. Eram uns vivos atrás de mim reclamando do trabalho de ter que mudar de casa no próximo final de semana. Diferente do sepultado, coitados, eles tinham tanto a carregar para seu novo endereço!



   

Arnold Böcklin - "A ilha dos mortos" (1886)
   


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Sinal fechado II

Sua imagem de semáforo pôs sinal vermelho no meu percurso:

"PARE"

Atônita, a princípio não soube o que fazer... na rua da minha existência, a sinalização é feita de outro jeito. Acho que na rua da minha existência, os guardas de trânsito se revezam. São gentis e fazem acrobacias (cronometrando para não atrapalhar as idas e vindas).
Os carros são transparentes, movidos a uma espécie de essência à base de lixo.Que não se chama mais lixo e sim "Prática de sustentação". Dele se extrai a "gasolimpa".

Mas, sua imagem de semáforo pôs sinal vermelho no meu percurso (como ia dizendo).
Apesar de estar fora de contexto, esperei o que sua imagem queria comigo.
Olhou-me, sorriu, se lembrou.
Olhei. E esperei. "_ Uma hora o guardinha vai ter que apitar!" (Pensei comigo)

Com sua imagem de semáforo, tive de esperar o desfile de todas as minhas frustrações e carências de amor. 
Umas vinham tresloucadas. Outras dançavam. Algumas choravam.
Até o carro alegórico da agonia desfilou!
Esperei passarem (estava eu a pé).

Foi quando o guardinha apitou! Rota livre, enfim!
O guardinha me pegou pela mão, auxiliando-me a atravessar aquela avenida larga. 
Não havia mais perigo de eu ser atropelada.
"_ Pode continuar" .

domingo, 10 de julho de 2016

Nada demais.

Passeando de bicicleta, vieram-me muitas reflexões e também lembranças. Tudo se misturava a sensações corpóreas-emocionais, sem me esquecer da pitada do místico que conferia  ao passeio a quentura das palavras de Guimarães Rosa:

"Até para a gente se lembrar de Deus, carece de se ter algum costume."

"_ Tenho que escrever tudo isso! " Pensava eu! Mas, após a semi-vontade, eu já havia me esquecido do princípio. A inspiração se enfraquecia diante da autonomia das imagens.
Para não me perder no que pensei e senti, decidi (não muito articuladamente) dividir as inspirações em itens. Algo que para mim se parece com o balancete mensal ou diário das corporations . Por isso, quando me organizo, me incomodo. Mas, me organizo (e me incomodo). As palavras se apresentam à inspiração seguindo sua lógica de signos e, pelo menos no meu ser, se põem à revelia. (Lamento se houve confusão de conceitos linguísticos! Lamento e prossigo, certo?).

(Soudain, j'ai eu envie de me coucher sur la pelouse et de permettre folle et douce que tu me baises) Mas, isto não estava no script! E os orientalizados têm razão quando dizem que a mente é a louca da casa.

Vejo formigas e penso que está na hora de voltar a desenvolver a ideia inicial. As formigas invadem meu pé direito protegido (felizmente) pelo calçado.
E penso: "_ Será mesmo possível uma reconciliação com esta categoria de artrópode neurótico? Parecem funcionários de multinacionais apressadas! Com a diferença que não usam paletós" (será?!)
Bem... me cansei agora... Olho para cima para lembrar "o que era mesmo".
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Enquanto eu andava de bicicleta, uma pergunta insistente vinha ter com o espírito pedalante:

 "_ Somos parecidos em que com o lugar onde nascemos?"

Tenho para mim, aliás, esta teoria não é minha, que acabamos parecidos com aquilo que fazemos e com o que nos afeiçoamos e desafeiçoamos e votamos a nos afeiçoar. Para ser explicativa: como numa gangorra de sentir e perguntar por que sentiu. (O didatismo também se chama meu nome, posto que me alivio quando as coisas ficam claras para as pessoas. Sou professora).
Mas, sou confusa, porque vivo muito do que eu crio. Porque o que eu crio é uma das tábuas de salvação para não decretar, de uma vez por todas, que viver é um sacrilégio. (!) 

O fato é que olhei para minha cidadezinha do alto do pedal e do bairro meio longínquo onde estava.

O sol, o leve suor no rosto, as árvores que estavam ao longe, as árvores que estavam ao perto, a incidência da luz sobre a tênue camada de poeira, o nada, a quietude de breves frações momentâneas, o espaço não sentir. 
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Eu nasci numa pequena cidade do interior de São Paulo. Nela não há mais o padeiro vendendo pão e biscoito numa Kombi  incrementada. A rua da casa da minha avó... a casa da minha avó - meu asilo político aos cinco anos de idade (a crise da tenra idade).
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Gosto de Descalvado. Canso de Descalvado. (Faço as pazes com Descalvado?)
Descalvado com suas imensas residências assobradadas. Fortalezas de vidro, grafiatos que, ao cabo dos tijolos dos muros, existe um cercado elétrico a ofender passarinhos e passantes. Descalvado dos carrões e de " invejas que dão movimento demais aos olhos". Minha cidadezinha onde "Toda paz da Natureza sem gente/Vem sentar-se a meu lado". 
Descalvado - terra de nome árido, onde há casas antigas e uma chapada em miniatura em que o Domingo se põe ao sol.

Olho para os galhos da árvore minha vizinha. Eles fazem lembrar esmeraldas...Esmeralda é a pedra do anel de professora da minha mãe...

Mas, os artrópodes neuróticos se foram e deram lugar para o canto oco de alguma pomba pousada invisivelmente. O Domingo se deixa ir aos poucos. Minha bicicleta está inerte e minhas pernas doem um pouco por causa do passado. 
Solidarizo-me com o que não sei, mas, que de alguma forma percebo estar em comunhão com minhas constatações ora vazias ora frágeis.
Volto a sentir. Meus olhos veem o limbo, o Resedá trajado de inverno.
Ponho um ponto final. 
Esse Domingo já está começando a cheirar à missa das 7!