quarta-feira, 15 de março de 2017

Improviso sob o "Improviso do amor-perfeito"


Naquela nuvem naquela, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.

(Cecília Meireles)


Pensar com o sentimento numa parcela de ti
que me é fogo manso guardado sob o marrom prateado das praias  
que saúdam meus pés,
tão gentilmente...

Eu sou o amor por ti
quando o fôlego absorto da lembrança,
me põe num fechar de olhos.

E meu peito dança
com a folhagem ensolarada do outono.

E quando me sento admirada com a litania das lágrimas que se guardaram
atrás do pêndulo desta hora.

Canto surdamente uma canção para mim
para ser este amor que invento.

Consorte.
De espera nenhuma.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Fugindo da Górgona parte centésima.

Hoje passei o dia inteiro fugindo da Górgona. Essa Medusa localizada em parte ignorada no meio do peito, que me provoca uma espécie de azia, enjoo ou síndrome hepática emocional.
Talvez seja ansiedade que adoça demais os olhos. Talvez  eu esteja mesmo bem guarnida de ansiedade - essa Górgona ora me alimenta ora me conduz ao jejum!
Para não encarar a Górgona e não virar pedra, vou enumerar as estratégias das quais lancei mão o dia todo:

- Dei uma de monja copista. Revisitei textos amados e passei muitas horas a copiá-los. Ainda hoje, descobri que os monges medievais copiavam as escrituras bíblicas como forma de dizimarem o tédio. Era um benefício duplo: além de alimentar a alma com sabedoria, o tédio também era rechaçado. (Identifiquei-me ou não?)

- Andei descalça no chão molhado. No asfalto mesmo. Depois na grama, na terra, na lajota me concentrando na sensação que essa simples ação me provocava.

- Como o Zeca assistiu ao filme " Em nome de Deus" - filme em que se conta a história de amor de Heloísa e Abelardo - claro que me emocionei mais um bocado. Assisti até a parte em que os dois foram flagrados. Depois, a coisa só piora! Fugi. No lugar de continuar a assistir, fui pesquisar em francês a famosa história.

- Na pesquisa sobre Heloísa e Abelardo, fui parar num vídeo no Youtube em que um escritor francês chamado Jean Tuilé reconta a história desses dois! Descobri que há um livro chamado Heloïse ouille e que Heloísa era pra lá de prafentex e que Abelardo era praticamente um rockstar da época. Fiquei surpresa com a conexão das coisas. Pois o mesmo Jean Tuilé é autor de Le magazin des suicides - que na verdade é um conto refeito para cinema. (Legal, hein??)

- Ouvindo francês, muitas palavras foram conhecidas ou revisitadas. Dentre elas, o termo caveau (Momento do autoquestionamento se tenho ou não uma veia meio gótica. Será?)Ouvindo caveau, descobri também outro tema muito interessante para se pesquisar que é o chamado Miracle d'Abélard! Parece que quando os restos mortais de ambos se encontraram ou por misticismo ou irregularidade do solo, o esqueleto de Abelardo literalmente abraçou o resto dos ossos da amada! (Achei belo, misterioso, estonteante pra dizer a verdade). Só não pesquiso isso hoje porque já estou cansada. Corri demais da Górgona. Mas, se paro eu ainda doo... Por isso estou aqui escrevendo este montão de coisa! (Com ou sem sentido???)

- Abelardo, Heloísa, ossos, cova! Lá fui eu parar em outro site francês em que havia a explicação estrutural das covas! Bem: vi figuras explicativas sobre a organização dos caixões e conheci o termo "Vazio sanitário". Essa expressão impressionante me deu a conhecer o óbvio: que existe tal separação dos corpos da superfície... Foi aqui que duvidei se quero mesmo ser enterrada! Achei triste, superficial, construído... Contudo, a ideia da cremação nunca me atraiu! Entendo como sacanagem a exposição da microfauna corpórea à fome! Bem no momento do banquete! Cadáver é carne dada aos vermes! Não é alcatra pra churrasco de crematório! (rsrsrs...que coisa mais ridícula de se escrever!)

- Ah, já estou cansada e já bocejo... Tento parar de me entreter. Será que a Górgona já dormiu? Hein? Hein? Heinnnnnn?????? Não! Continuo a doer... Hum...o que fazer, o que fazer? Bem, me deitei no chão. Tentei uma conexão com o superior. Melhorei! Deu mais gás pra correr...Ufa! Górgona imensa!

- Fui ouvir Canto Gregoriano. Abelardo, Heloísa, Górgona, dor... Pensei na claridade que estas entoações meditativas davam à época! Funcionou comigo! Foi lindo! Senti-me mais apaziguada! Dá-lhe Canto Gregoriano então... Fui pesquisar sobre a origem do Canto Gregoriano! Descobri Papa Gregório, descobri século VI, descobri o monastério em Silos na Espanha... E a Górgona atrás de mim ainda! Ai...

- Bem, continuo adepta do silêncio porque hoje falar com as pessoas está dolorido pra mim! Enfio-me aqui na minha "Arrière-boutique" - como diz Montaigne - quer dizer: no meu cantinho!

- Antes de Heloísa e Abelardo, reli "Da solidão" da Cecília para mais tarde pensar em escrever sobre seu elo com o ensaio de Montaigne  "Sobre a solidão". Anotei algumas coisas, alguns pensamentos, escrevi...enfim...vali-me de novo das letras como estrada, "pernas pra que te quero" pra fugir.

Estou cansada de tanto correr com a cabeça. De tanto me manter ocupada! De tanto não encarar esse monstro que é minha Górgona magnífica! É... a glote lacrimeja e no meio do peito não tem ninguém...ou tem um único sobrevivente que ainda grita. E que somente eu mesma ouço!
Estou com a mente calejada de tanto correr. Estou com cãibras nas sinapses... Tô quase na linha de chegada do dia 02 de março para o dia 03 e a Górgona que me espia, espreita, aparece na minha frente e que me olha! Franze ainda mais o cenho. Ri! Meu Deus!!!
Bem, meus olhos já pesam ainda mais! Daqui a pouco: naninha! Espero não reencontrar a Górgona sentada numa poltrona de veludo vermelho no meio do meu inconsciente, entoando Canto Gregoriano ou travestida de casal maluquete medieval! 

Cenas do próximo capítulo. Em breve! Só queria mesmo era um comercialzinho pra descansar.

(Pra variar um pouquinho, ilustro a minha Górgona com a Hydra. Só pra diversificar... O mostrão tá aquático hoje...)


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"Caturrinha"

"O real é aquilo de que não se pode acordar"  (Valéry) 

Um viva eterno à imaginação e às suas maluquices!


*Caturrinha sempre desejou morar em lugares impossíveis: dentro dos pianos, embaixo das mesas, entre as rodas dos grandes relógios, e **nos braços do lustre, que era uma árvore de cabeça para baixo. Morar - para ela - era participar profundamente de um certo mundo. As casas são apenas cascas: fachadas, telhados, paredes... Não, Caturrinha não queria cascas: queria o sabor e o perfume. Queria o segredo. Na região do segredo encontrava linguagem, companhia, conversação.
   Na verdade, nunca se preocupou com a maneira de se chegar a este mundo, porque a bem dizer, para ela, não havia diferença bem nítida entre nascer e não nascer. Mas, quando lhe disseram que chegara dentro de uma abóbora, achou a coisa mais absolutamente natural do mundo. Talvez tivesse lamentado vagamente - muito vagamente -  não ter sido num vidro grande de farmácia, reclinada naquela frescura líquida e já vendo as paisagens aparecerem através de curvas paredes amarelas e azuis.
   Mas também isso não era motivo para apreensões nem nostalgias, pois bastava-lhe querer passar a residir nesses lugares incríveis. Habita muitas horas o recesso de um intrincado desenho do tapete, e uma vez descobriu como se pode viver dentro de uma lágrima  equilibrada nas pestanas.
   Inúmeras vezes adormeceu naquele prado verde que se vê no meio da lua, e por onde pasta, movendo a cauda, o cavalinho de S. Jorge. Nesse tempo, sua vida era ainda muito estática: apenas descobria uma nova morada, ali pousava, e ficava entretida. Melhor seria dizer contida em sua distração, como o orvalho na sua forma. Foi o tempo do seu êxtase dentro das cores, das transparências, das texturas. Por acaso já moraste, meu irmão, dentro do anil? dentro da cânfora? na minúscula ilha submersa na escuridão de um caroço de ameixa? Pois esses eram os seus profundos caminhos pensativos.
   Depois em tempos de mais atividade, patinou pelas alamedas das fibras das madeiras, dos veios dos mármores, - e os labirintos que as formigas apenas superficialmente conhecem nas folhas dos cóleos e dos tinhorões não tinham estradas nem túneis que não houvesse percorrido, embora servissem apenas de mapa, e as viagens fossem dar a paragens de uma realidade total, mas sem fim e sem nome: como planetas ainda por localizar.
   Quando diziam que Caturrinha sonhava, ela não entendia bem. Pois como nascer e não-nascer, o sonhar e o não-sonhar nunca lhe apresentaram contrastes ou oposição. Tudo lhe era naturalmente fluido e unido, com pequenos caprichos, de vez em quando, como água que forma bolhas, estrias, mas vai andando, e reabsorve suas pequenas, graciosas, rápidas e gratuitas diversões.
   Naturalmente o circo era o ambiente mais compreensivo de todos. O estranhável é que a humanidade inteira não andasse em trapézios, como as aranhas, e os homens não pudessem torcer o peito para as costas quando entendessem, nem pudessem pular de um telhado para outro, de uma praia para outra praia, de uma estrela para outra estrela. Nesses momentos, quanto todos se espantavam, e batiam palmas e arregalavam os olhos, sentia um certo desprezo melancólico, não se sabe contra quem. Fitava as pessoas que celebravam aquelas habilidades como coisas excepcionais. Ela não as entendia. Positivamente, não entendia as pessoas grandes. E, com certo desdém, também lhe inspirava uma espécie de surda pena.
   Às vezes dizia: "Hoje sou peixe" ou "Agora estou sendo sempre-viva" -  e as pessoas crescidas faziam um muxoxo e resmungavam: "Coisas da Caturrinha." Diziam-no com uma expressão de certa piedade. E ela os achava tão bobos, tão bobos... -  e continuava a mover suas nadadeiras, dóceis, transparentes, como franjas de água, e continuava a crispar num vento invisível as amarelas escamas de suas flores sem morte.
   Houve um tempo em que foi violão. E quando respirava sentia-se toda sonora. Mas ninguém nunca reparou nisso. Morava num guarda-roupa enorme, com o peso e o odor de uns vestidos imemoriais pousados na sua madeira. A qualquer escorregar de uma fímbria, acordavam músicas. E enquanto estava sendo assim violão, em toda a sua plenitude, acontecia perguntar-lhe a professora: "Vamos, Caturrinha, quantos são os reinos da natureza?" "Ah! - dizia -  uma porção..." E punha-se a enumerar, sem pressa: havia o reino dos cavalos de estrela na testa... o reino dos anões de barba verde... o dos sapos mágicos... o dos touros com asas...
   A classe inteira ria. Eram muito estudiosas, aquelas meninas. E a professora passava adiante, não sem alguma consternação: "Ah... esta Caturrinha..." Mas como era a menorzinha de todas, faziam-lhe festas, esticavam-lhe os cachos do cabelo, davam todas as demonstrações de permitir que a sua maluquice prolongasse por muito tempo. Afinal era tão engraçada!
    Mais tarde é que tudo mudou um pouco. Perguntaram-lhe: "Como vai ser a sua casa, quando você se casar?" Ora essa! Dizia: "Translúcida." "Translúcida, como? De vidro?" "De vidro, de pétala, de pálpebra..."
   Não, depois de uma certa idade, todos devemos ter uma certa conveniência com as palavras. Uma criança é uma criança, vá lá, não sabe o que diz. Mas agora, depois de grande, vir uma pessoa dizer com ar de seriedade: "estou viajando em redor de uma vela de cera" - não, isso já é pedantismo ou loucura. Depois de certa idade, é proibido possuir imaginação.
   E as amigas de Caturrinha tiveram casas curiosíssimas - com varandas prateadas, móveis com muitos espelhos, cortinas de muitos feitios, papéis pintados, tapetes como caleidoscópios, colunas como grutas, aquários com peixes dançantes... E nunca nenhuma delas viu a casa que tinha. Sabiam receitas de limpar mármores, de polir madeiras, de tirar manchas de veludo, e nunca descobriram os países soterrados naqueles mármores, as dinastias que desfilavam nos íntimos arabescos daquelas madeiras, as farfalhantes florestas, com plumas e cascatas, aprisionadas nos seus veludos.
   Nunca dormiram dentro de seus pianos, lá onde a música ainda é um acorde de aromas de madeira e metal. Nunca esperaram o entardecer com o rosto encostado a um vidro, vendo o diagrama da vida na névoa da respiração. E perguntavam, compadecidas: "E você, Caturrinha?" "Eu? Agora estou morando dentro de uma palavra. É maravilhosa, tem quinze declinações." E começa a decliná-la, exatamente como fazem os contorcionistas nos circos: um músculo que retesa, outro que se afrouxa, um joelho que sobe, um pé que aparece noutro lugar, a mão que tateia procurando solo, os olhos que vão surgindo, rampantes, como dois sáurios... E advertia: "mas ainda faltam outros casos: o adverbial, o prossecutivo, o mutativo..."
   E as amigas ficavam imóveis, um pouco. Depois falavam em comprar outras cadeiras, mudar as cortinas, arranjar nova casa... Porque as casas são pequenas ou grandes, caras ou baratas, em lugares elegantes ou em bairros sem distinção... "Não acha, Caturrinha?"
   Mas os seus pontos de vista eram sempre esquisitos. "Bem, é conforme... Por exemplo, as nozes são um pouco escuras, mas têm aqueles tabiques muito delicados, e aqueles marfins macios e crespos... O ovo já é mais translúcido, e muito doce de percorrer, de uma câmara para outra... Pensando bem, prefiro o caramujo. É uma usina de sonho, e sua rampa é firme como mármore e suave como seda..."
   Todos chegaram, desse modo, à conclusão de que Caturrinha não levava nada a sério. Uma vez que não era louca, e isso positivamente não era, só podia dizer aquilo por gracejo. E era uma pena,  que estivesse sempre gracejando assim...
   Pois as amigas de Caturrinha pensavam com aquela gravidade da criada que lhe ponderou: "Madama, eu, pra falar a verdade, sou arrumadeira, mas só gosto de me empregar em apartamento que tem entrada de mármore e elevador dourado..." E ela - meus irmãos! -  estava morando justamente naquela época, nas letras do alfabeto hebraico! - que lhe pareceu muito plástico, porque tinha elefante, casa, caramelo, porta, água, peixe... - era um longo bazar, no qual se podia ir sonhando longamente, de soleira em soleira...

(Cecília Meireles. Rio de Janeiro, A Manhã, "Letras e Artes", 9 de fevereiro de 1947)


*Caturrinha (caturro): teimosa, obstinada.
** Destaque às partes que nos causam mais embasbacamento.