quinta-feira, 25 de outubro de 2018

Correio!

Cecília, desculpe incomodar-te do diáfano de tua nuvem, das formas aquáticas de teu passa-tempo, da profundeza aérea de teus compromissos. Mas, somos amigas íntimas! Embora, mui respeitosamente, eu obedeça com amor a hierarquia de mestra e discípula. 
Não sei bem como ir diretamente ao assunto. Sabes dos meus invisíveis e é tão reconfortante sempre constatar que não há necessidade alguma que eu os explique. Sempre entendes cada detalhe do meu silêncio, bem como a pergunta principal deste agora.

Por que?

Deste-me? Uma ponte que se acaba antes mesmo de projetada. Um elo feito de semi-sono, semi-acontecimento só feito de inconclusões e de veredictos impalpáveis...
As lembranças, agora ornadas dos esquecimentos os mais transparentes, ainda são presentes embalados em belas caixas abertas onde não se encontra nada. E como ainda brilham...

Sob o tule, 
foi um diamante? Um rubi azul? Uma esmeralda amarela? Água marinha doce? Lápis-lazúli sem ponta? Miosótis secos... Flor de sal com aroma de cânfora esquecida... Sentimento.

Sei de teus ensinamentos enigmas. Felizmente, tenho familiaridade com tuas explicações de ventos sobre areias - em cada grão alado e mínimo, um entendimento. Sei também que fantasmas sentem sono, cansaço e necessitam de seu tempo sem número sozinhos. (Não quero, em absoluto, perturbar suas sestas) Mas, cara amiga-mestra, há um em particular que se coloca insone e creio que seja eu mesma quem não permite seu descanso... Também! Por que tanta poesia?
Gostaria muito de compreender a cadência da valsa das saudades...
Há casais que rodam elegantes no vasto salão de meus olhos fechados. Há também músicos e violoncelos ressoando o interminável da música jamais existida de tão audível...
E é belo. Talvez a mais bonita dentre as ficções verdadeiras. A pureza mais genuína das farsas. A supremacia absoluta da ilusão mais justa. Certamente, um epigrama perdido no reinado dos contos.

Compreendo outra vez. Indiscernivelmente. 
Como és paciente com minhas dúvidas! Com minhas curiosidades renitentes! Tu hás, minha Mestra, de me explicar tudo outra vez! E eu hei de te dizer, de novo, "muito obrigada!"
Ainda bem que sempre me recordas que "Tenho vários séculos de idade, e sou como um pré-escolar." Não ouso pedir que sejas mais clara! (esta minha mania de superlativos, sei que bem entendes).
Abraço profundo em poesia! Aliás, vitalício!

De tua agradecida fiel aluna porta-estandarte,

                                                                                Imaginauta.


domingo, 14 de outubro de 2018

Você precisa ser forte

E, alada, leve, sobre a dor que choras,
Sem qu'rer saber de ti a tarde desce...
Fernando Pessoa

Na ocasião de uma perda, no momento mais pontiagudo ou mais átono da dor , com frequência ouvimos: "Você precisa ser forte!"
No jardim das pedras, onde pedestres invisíveis por suas ruas se presumem, caminhamos em direção à campa: um quadrilátero de cimento e cal que em nada se chama poesia.
Ouvimos somente os passos do cortejo, o ritmo anônimo de um compasso único. E, novamente, o mesmo conselho ainda que não pedido: "Você precisa ser forte."

Hoje, pela manhã, senti que algo de mim está morrendo. Algo de há muito velho, cansado de obsoleto. Por um bom tempo, meus olhos ganharam uma espécie de luz e sombra de exéquias indiscerníveis.
Senti vontade de visitar o cemitério e olhar incompreensivelmente a dor.
Não o fiz.

Permaneci firmemente hesitante onde estava. Da janela, presumi as nuvens cinzas que desciam as cortinas no céu suavemente enlutado. Escolhi ficar de olhos fechados.

Pausa respirada...

Até que aos poucos, fui compreendendo que era o movimento que me chamava. Aliás, para um onde que, não necessariamente, seria aquele antigo lugar que há muito me serviu de alívio controverso para meus males ignorados.
Não era o jardim das pedras,  mas o movimento que me queria com ele.
O movimento!

Um passeio de bicicleta pela cidade em que tudo medra com certa resistência ao avanço; onde muitas pessoas tentam lhe colocar casas iguais e muros enormes; onde grande parte dos moradores insiste em dar-lhe um uniforme ao estilo de glamourosas fardas fechadas, com medalhas em honra ao mérito de algo esvaziado... Bem, felizmente, esses munícipes ainda são vencidos por algum mistério impassível. Não sei por quanto tempo a reiteração do ermo ainda defenderá o último arrebalde...

Um movimento por caminhos mais ou menos íngremes me conduziu a rever  montanhas mais ou menos modestas que circundam minha cidadezinha. Algumas muito preferidas...
Aí começaram as histórias.

...

Passeando por meus movimentos,
tendo como único som o ruído da bicicleta,
que me fazia lembrar do som daquelas rodas,
que levam a perda para o definitivo,
que, aparentemente sepultado,
sempre será chaga exposta.


Fui concluindo sem cessar:
_ Por que é que se precisa ser forte somente no agudo da profunda tristeza? Por que é que se tem de ser forte para esse definitivo que não me parece autêntico?
No passeio, sentia minhas pernas tão fortes para mim, na intenção de me levar a ir ver o mar! Ou parte dele numa única grande onda de pedra!


Révolte-toi La montagne aussi est une colère. 
Voyons la hauteur de la tienne!
                                                                                                        (Villiers)


Continuei concluindo sem cessar que "o preciso ser forte" podia então ter muitos jeitos! Podia até ter uma bicicleta numa manhã nublada de um domingo qualquer de outubro, com cigarras por perto e florezinhas baldias de um silêncio sozinho... Foi quando diante dos meus olhos, como nos sonhos, desconhecidos apareceram de mãos dadas perto da rua para o fim do mundo para depois sumirem.

O "ser forte" tinha a cara daquela  manhã umedecida, num passeio feito de muitos aromas:


No cedro e na rosa,
o gesto da brisa.
(Cecília Meireles)









Mas antes, eu já havia passado por cavalos e também pela confraria de vacas que trocavam entre si suas ruminâncias... (influência de Guimarães Rosa).
Vi também a crina de um belo cavalo marrom  que não era "reta, curta e levantada, como uma escova de dentes." ("O burrinho pedrês"). O cavalo tinha uma linda franja aloirada e lisa que, aliás, ia muito bem com o conjunto da obra ornada de liberdade  numa pelagem ruiva.

O mais  do movimento me deu a perceber como é possível  que "o ser forte" enfeite um pouco aquelas tristezas que aparecem de vez em quando, sem qualquer aviso prévio.
Fui indo considerando (sempre sem créditos no fim, porque não tem mesmo final) que os poetas sempre foram os que coloriram a minha vida desde o começo. Poemas e  histórias se dão para mim em livros, canções, pinturas, mas também ao vivo. Sob diversas formas palpáveis, ou em lembranças de palavras que são fantasmagorias amáveis.
*

A mesma cena com protagonistas diferentes:








Quem me dera que a minha vida fosse um carro de bois
Que vem a chiar, manhaninha cedo, pela estrada,
E que para de onde veio volta depois
Quase à noitinha pela mesma estrada.

Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas...
A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...
Quando eu já não servia, tiravam-me as rodas
E eu ficava virado e partido no fundo de um barranco.

Ou então faziam de mim qualquer coisa diferente
E eu não sabia nada do que de mim faziam...
Mas eu não sou um carro, sou diferente
Mas em que sou realmente diferente nunca me diriam.
(Alberto Caeiro)

Pouco mais adiante:


Pergunto coisas ao burití; e o que ele responde é: coragem minha
(Grande sertão: veredas)



 



Cada imagem me abastecia com ideias futuras que, ainda que não se concretizassem, não deixariam jamais de ser ideias... Durante todo o tempo, elas me lembravam o "ser forte" de um jeito diferentemente verdadeiro para mim.

A vontade de voltar para casa não estava mais demorando em aparecer, mas,  nova descoberta se pôs bem ali na minha frente , à espera de dar a conhecer certos atributos tão instigantes quanto solenes. (esta senhora devia estar perdida por algum soneto desconhecido):






O que fazia essa senhora era perpetuar em longos versos o insólito daquela rua bem no meio da coordenada para nenhum lugar (isso conferiu mais graça ao passeio).

De qualquer modo, quando "uma mosca resmungou atrás de mim" (Cecília Meireles), quis retornar pra casa. Voltar para contar para mim e para algum distraído sobre as considerações de "ser forte". (Será que ainda existem pessoas movidas pela doçura de estar triste, sem que para tanto deixem de ser alegres e agradecidas?)

Em casa, cada vez mais, decidi me tomar pelas mãos, aquiescendo atentamente o conselho de "ser forte".  Ser forte para tudo quanto é momento, especialmente para além daquele decreto de o ser. Ser forte num momento em que ninguém requeira que eu o seja. 

Forte que vai inventando melhor parte de mim por algum instante qualquer.