quarta-feira, 27 de março de 2019

"Solar dos últimos"

Há muito tempo que não escrevo neste espaço... Às vezes sinto muita vontade de recuperar este hábito que nem era tão pontual assim. Mas, muitas coisas acontecem e nosso serzinho responde às mudanças com muito vagar. É aí que as ideias colocam-se perdidas, coitadas. Ou confusas. Ou cansadas porque o racional constata - tragicamente - que sempre foi metido à besta, mas, bastante manco.
Hoje, vasculhando por alguns guardados, encontrei um texto escrito em maio de 2018! Texto pelo qual senti muita simpatia. Decidi, então, colocá-lo aqui. Pelo mundo. Pelo mundo? É... por essa espécie de mundo...

Ps: Advirto que não terminei o Livro do desassossego e que nem pretendo fazê-lo! Pretendo sim retomar a leitura da joia qualquer dia.



“O solar dos últimos” (como o entendo do Livro do desassossego)

Onde se encontra o “Solar dos últimos” em minha mente? Esse lugar tão simpático? Acolhedor, todo ornado de desilusões? Com seus personagens múltiplos? Colecionadores de mágoas doces que se esqueceram nalgum canto despercebido?
No “Solar dos últimos” há tantas teias de aranhas de várias cores e idades. Colecionam lá estes tules. De tamanhos e formas singulares. No “Solar dos últimos” existem também muitos casarios em ruínas. Alguns outros com portas e janelas desbotadas, mas sempre fiéis aos tempos. Existem também algumas ruas, ladeadas por árvores – como num ‘repouso’ para os perdidos. Aqueles que se esqueceram de serem eficazes. Que não se lembraram de tirar o primeiro prêmio, a última condecoração, a medalha final a ser pendurada nesses galardões sozinhos. Coitados! Sempre tão menores do que as paredes!
Cabem no “Solar dos últimos” as que nunca esposaram alguém e que nem por isso se desfizeram de seus vestidos de noivas: rotos, amarrotados. Só tudo envelheceu: menos a espera. Portanto, as grinaldas desfalecidas combinam com o grisalho áspero dos cabelos em desalinhos e trançados. Essas loucas dançam e sempre mantêm os olhos para cima, como para tocarem, alcançarem mesmo o último adeus.
Existem também os alfarrabistas. Afeiçoados ao número de buracos das páginas. A cada dia que passa, uma escavação que a traça fez. E o que seria da cadeia alimentar dos pérfidos se as letras jamais fossem comestíveis? No “Solar dos últimos”... No “Solar dos últimos” se comem pães amanhecidos, anoitecidos e auroreados! A água pode estar com lodo, mas é sempre fresca! E, desse verde que nem sempre é fatal, murmuram formas fantasmagóricas, desfazendo-se em ritmos fluidos, em danças de mãos de bolor, braços esguios de fungos aquáticos, excêntricas plantações... A última denominação das fadas verdes.
*
As almas encontram-se numa das salas, dentre tantas salas num dos casarios do “Solar dos últimos”. Até para a descrição desse encontro, a poesia não medra com tanta desenvoltura. É a comoção que faz tremer o que se pensa. As almas só sabem sentir como dentro de um corredor que as direciona para um grande altar de uma catedral inconclusa. Clara-escura, clara-escura. Vazia. Onde há bancos onde nenhum penitente ou contrito se senta. Onde não existem joelhos que sustentam votos, nem arrependimentos. Encontram-se. Colocam-se em pé. Ao lado de algumas estantes à espera de alinhos, arrumações, memórias preservadas. E é tanto zelo com que lidam com os alfarrábios. Com os dizeres. Belas. Peculiarmente sem igual. Inesquecíveis à sua maneira. Vêem-se, sorriem uma para outra daquela forma habitual a seus modos. Sorriem, como quem oferece uma flor colhida pelas mãos de uma criança que esteve a passeio por alguma rua solitária. O presente é partilhado com grande comoção. Com a tristeza inconfessa de um lembrar que ainda é tão indiscernível.

              O convite para a ajuda em arrumar. E uma das almas,  em grande amor, anda cansada de pensamentos. As estantes, os instantes são calabouços. Preferindo somente estar. Assim, multiplicam-se em si mesmas, se enumeram em várias ações e gestos que tanto evocam! Olham-se. E isso é o dia mais feliz que descrevem. Estão tão ali. Sorrindo uma para outra. Os livros, o sagrado da poeira, as mãos tingidas de eras, séculos e de tanta memória.
“_Não quer mesmo ajudar?”
“_ Estou cansada! Posso somente estar? Mas, de que forma eu talvez ajudasse? Há algum belo que não seja de papel e pensamento? Letras e atenção de olhos? Circunvoluções de razão?"
“_Há o belo dos cristais. Taças, cálices, rubis, prateados, posições azuis e vítreas que esperam a consagração do lugar ideal! Pode?” 
_"Sim! Eu posso! Eu ajudo com todo o meu amor. "

E ficaram assim no “Solar das almas últimas”. A sós com as bodas eternas de suas desesperanças que, definitivamente, se colocaram em paz.