sábado, 28 de março de 2020

"Voar, voar, subir, subir"

"Cada vez que o reino do humano me parece condenado ao peso, 
digo para mim mesmo que à maneira de Perseu eu devia voar para outro espaço. 
Não se trata absolutamente de fuga para o sonho ou o irracional. 
Quero dizer que preciso mudar de ponto de observação, 
que preciso considerar o mundo sob outra ótica, 
outra lógica, outros meios de conhecimento [...]"

Italo Calvino - Seis propostas para o próximo milênio



O que tenho feito para mudar minha ótica a respeito do mundo? Da condição do "reino do humano"? E da sua densidade? 
De que outro modo ouvir? 
Ver? 
Entender? 
Quais formas posso descobrir de compactuar com o silêncio? E quantas mentiras me dou conta de que conto pra mim quando falei sem parar? 
Quantos modos tenho eu de procurar a lua na quietude do céu ? E, à noite, como  invento quantas estrelas minha visão é capaz de conceber?

E os seus olhos nos meus? 
Quando de fato eu os vejo?

Minha cara, um hábito do reflexo no espelho, deu pra ser mais do que espaço que miro para pentear os cabelos. Eu mesma dei pra mirabolar os mesmos problemas, de modo ainda mais velho e gasto...
Sinto que não sei muito bem andar comigo, ainda mais quando pedem pra que eu fique com mais migo ainda... É quando tento alçar voo ao encalço de redescobrir (aos poucos) o que sou. Mas, o que tenho sido há tão longo tempo é muito mais forte! e logo me puxo pra baixo outra vez...

Por hora, 
nada de opinião alada sobre o que sou pra mim. O que me entendo é fincado. Bruto. Empacado. E quer logo voltar a exercer seus mandatos e costumes. Abaixo esse tempo besta em que burro deve parar de carregar  carga!

Quero voltar a ser aquilo que conheço! De cá pra lá, daí pra qui e vice-versa! Está na constituição o direito à frequência de todos os lugares e à recusa de em mim ficar abrigada! Mesmo por que nunca fui boa recepcionista de mim! Não sou pousada para minha pessoa! Talvez eu seja daqueles seres com jeito de estação! Um trem atrás do outro, com pressa de pegar o bonde menos lotado de tantos comigos possíveis. E saltar pra longe!
Acontece que a estação que sou anda  interditada... E, se tento ficar ali sentada à espera de algum trem, corro o risco de perder tempo à toa. Não tem jeito! Tenho de voltar pra casa e tentar mudar meu ponto de visão do chão pro ar.
Tenho de retomar as tentativas de alçar voo, para que do alto de mim, eu me deslumbre com um outro tipo de sol...

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Memórias de uma adolescente desapontada (Era uma vez Regina Duarte)

   Ontem,  assisti ao vídeo "Malu mulher, bora começar de novo?" postado por Zélia Duncan na sua página do Instagram. Aliás,  humildemente aplaudo "Zóinozóio" - série de vídeos que me instiga a questionamentos fundamentais frente à densidade de tempos tão confusos! Antes mesmo de tentar lançar algum pensamento ("O pensamento é triste/ o amor, insuficiente;/ e eu quero sempre mais do que vem nos milagres.), agradeço a artista Zélia Duncan pela força das suas palavras e por seu posicionamento sincero e lúcido que sempre me convida à reflexão.

*


   Fui uma adolescente mais ou menos típica; envolta por uma espécie de redoma super-protetora e repressiva há muito tempo perpetuada. Fui daquelas meninas que iam crescendo mais ou menos submersas na difícil fase de impulsos e transformações que pouco ou nada entendiam.  Fui mais ou menos semelhante às adolescentes interioranas dos anos 90: desenvolvi-me tensa, rígida, sobre alicerces que me cobravam o dever de conservar uma norma de comportamento herdada.  Por sua vez, tenho a consciência de que minha mãe já havia sido compelida a carregar um breviário de regras aprendido com a educação recebida da minha vó. De sua parte (ufa! que cansaço!), entendo que minha avó já havia sido treinada a manter esse compêndio de normas inventariado pela criação herdada da sua mãe - minha bisavó. Ou seja: é melhor parar por aqui a contemplação da minha genealogia de regras! Porque é difícil precisar desde quando eu contraí essa lombalgia ancestral, ocasionada pelo peso do ditame definidor e restritivo do que é ser uma mulher.

   Afirmo que fui mais ou menos uma adolescente típica pelo fato de diferir quanto à escolha dos ídolos que fomentavam as fantasias próprias da época. Naquele tempo, embora  também sequestrada pelos modismos, eu não ouvia New Kids on the block e tampouco a Madonna me inspirava! Tinham as bandas de música nacionais como RPMDominó, Polegar as quais eu não achava a menor graça! Talvez, devido ao fato de nos anos 80, a minha infância ter sido habitada pelos artista admirados pelos meus pais e irmãos mais velhos, meu gosto tenha se tornado sei lá... Um pouco diferente? Sendo assim, meus irmãos + minha mãe (professora de alma cantora, pintora e modista) + meu pai  (comerciante de espírito boêmio e poético) resultaram na percepção de que o belo e a arte verdadeira superam limites ou convenções. Inclusive,  estão para além da suposta diferença de gosto entre as gerações. 

   Nos anos 90, mais precisamente no ano de 1991, a rede de televisão mais famosa da época (não tô a fim de escrever o nome não, pois periga de a inspiração ir embora) reprisou - antes da novela das 6 - um de seus maiores sucessos: Roque Santeiro. Quando a novela foi lançada em 1985, eu tinha apenas 6 anos, isto é, não ligava para o frisson que aqueles personagens caricaturais causavam em todo mundo. Só me lembro do álbum de figurinhas que meu pai comprou para meus irmãos e de como eles se divertiam com toda aquela febre! Na reprise de Roque Santeiro em 91, nós já tínhamos vídeo-cassete (era o máximo poder gravar os programas que a gente gostava!). Para encurtar a história: eu não perdia um capítulo sequer, acompanhando tudo com meu pai e ainda gravando os capítulos para reassistir mais tarde! De quebra, Roque Santeiro passou a representar os momentos de proximidade com meu velho que era pessoa fechada. Nós ríamos muito juntos, enquanto  ele mencionava a inteligência da trama brilhantemente desenvolvida por Dias Gomes! Eram risos também fomentados pela fruição da ironia, da sátira, da crítica!  Resultado? Não foi  difícil de me apaixonar por aqueles personagens teatrais! Não foi difícil de me apaixonar por um personagem em específico: a cômica,  a irreverente e burlesca Viúva Porcina!
   
  Se na adolescência, eu já tinha uma inclinação forte para as artes, depois de ver a atuação de Regina Duarte em Roque Santeiro, eu tinha a certeza dos meus 12 anos de que seria atriz de teatro! Mais tarde, aos 14, a descoberta da poesia teatral de Cecília Meireles (pausa para a comoção do amor) vinha confirmar e reforçar a escolha de querer ser artista! E ser professora seria uma forma de eternizar o amor pelo palco, pela liberdade de expressão? (pausa para um possível talvez). O fato é que quando eu me apaixono, a entrega é certa! Nas minhas aventuras de fanzoca, quis saber absolutamente tudo sobre a atriz Regina Duarte! Do que ela gostava, quais os artistas eram suas referências, o que ouvia, o que amava, quais os valores que  defendia! Aquele ídola dos meus 12 anos me incentivou a querer conhecer sobre o universo das artes e do pensamento. Regina Duarte incentivou a adolescente a pesquisar sobre teatro, poesia, música, filosofia e a amar esses universos! Era nítida a impressão de que as ideias revolucionárias daquela artista traduziam o modelo feminino que gostaria de me tornar: uma mulher forte, independente, culta, inteligente, versátil! Enfim, um ser  livre! Por meio de suas entrevistas e dos programas dos quais participava - ouvi falar pela primeira vez em Guilherme de Almeida,  em A vida é sonho de Calderón de la Barca, em Simone de Beauvoir! Lembro-me ainda hoje de sua menção ao livro Memórias de uma moça bem comportada (tenho o livro)

  Com Regina Duarte, minha adolescente ouviu falar pela primeira vez sobre temas como: emancipação da mulher, divórcio, discussão sobre aborto e liberdade sexual. Até mesmo soube de sua participação do movimento "Diretas já" ao lado de Fernanda Montenegro, Marília Pera e tantos outros artistas! Era  realmente fascinante sua forma revolucionária de se expressar ao mundo! Na verdade, eu sentia até certa lisonja por haver escolhido uma ídola como Regina Duarte! Certamente, sou agradecida àquela atriz dos anos 80 e começo dos anos 90 por ter me apresentado um mundo rico, diverso, igualitário e libertador! O mundo das artes! Felizmente, percebo que minha adolescente levou consigo todo esse ensinamento para a vida adulta. É em respeito à sua memória, que venho decepcionadamente lamentar o que foi feito da artista que a inspirou na época. 

   Hoje, com grande tristeza, tenho a constatação de que a ídola da minha adolescência foi suplantada por uma figura absolutamente desconhecida. Com o passar dos anos, tenho a impressão de que aquela artista maravilhosa foi completamente substituída por uma espécie de sósia: no seu lugar, há uma mistura de business woman ao estilo capitalismo selvagem com a senhora dona Sinhá dos tempos do Brasil da escravidão.  Uma velha proprietária e careta, dona de um discurso cínico, calculista, retrógrado, preconceituoso, machista e alienado. E quando escrevo velha, não me refiro de maneira alguma à sua idade! Velha  aqui indica a acepção caduca do termo! Para mim, nos dias de hoje, determinadas infelicidades de sua autoria do tipo: "brincadeira homofóbica da boca pra fora" e "que dizia que lugar de negro é na cozinha" parecem sintetizar tudo aquilo que há de mais obsoleto e decaído!

   É triste ter de escrever este texto-desabafo, cuja intenção é procurar uma justificativa plausível para a escolha de alguns ídolos da adolescência.  Faço questão de aqui registrar que esse texto não tem o propósito de ofender a pessoa da atriz e tampouco atacar e desrespeitar seus posicionamentos. Peço desculpas se, por ventura, ele incorre neste equívoco! Trata-se mesmo de um desafogo um tanto acalorado e desiludido, diante da perda de uma referência. Nada mais! É a tal da minha porção adolescente que se sente bastante desapontada. Sabe aquele papo de que o problema não é com você, é comigo? Então, é mais ou menos isso...




terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Pescadora

Tenho observado que o tempo anda passando por mim, como se escoasse lentamente por uma espécie de duto muito minimamente estreito. Mas, depois, o tempo decide desaparecer, levando consigo meu estreitozinho imaginário - o pobre dele!

O fato é que o tempo parece me convidar - pelo menos ultimamente, para a pescaria. _ E pescar o que? Eu posso a mim mesma perguntar. E um outro lado de mim pode gentilmente ter  a boa vontade de sugerir: _ Pescar o tempo.
Como pescar o tempo do lugar onde me encontro que sou eu? Aparentemente, não tenho linha de pesca, nem vara, arpão, essas ferramentas específicas. Meu ser imaginante deixa cair - talvez quase permanentemente - algumas dicas. Cabe às outras partes de mim selecioná-las. Ou será, talvez, que são as iscas que escolhem as partes de mim com as quais desejam pescar? Eu definitivamente não sei.
O tempo se coloca diante de mim do seu silêncio. Das mesmas formas de todos os dias. Até dos mesmos personagens que sei que vão sendo outros, sem que da minha cegueira eu perceba algo relevante. E eu quero fisgar um peixe! Um tubarão rápido! Uma arraia imensa! Um golfinho! Talvez até uma baleia agora, com minha vara de pescar desprovida de anzol! Com minha vara de pescar que acabo de dizer que não existe! E tem de ser já! Agora! Sem nenhum minuto a mais, ouviu?
(suspiros)
O tempo, diante de mim, com seu silêncio visitado pela voz longínqua dos passarinhos multiplicados nas árvores, me convida a pescar. Outra vez, sem entender, me esforço muito. Me atrapalho com um montão de fisgas de pensamentos saltitantes! Agitados como peixinhos-iscas. Debatendo-se porque não querem ir parar na boca de ninguém... Meus pensamentos-fisgas saltitantes.... Uns até se deixam ser despedaçados em mordidas se nenhuma fome... E ficam lá, reclamando a parte que não mais lhes cabe... "A carne é triste, se é! e eu já li todos os livros!" já dizia o velho e bom belo...
_ Pesca!
Ver todas as horas sem irromper qualquer opinião antecipada e gasta.
Deixar que o ar corra, dance ou brinque nos pulmões - área de lazer para suas acrobacias  que ainda me metem medo.
Sentir que a hora do peixe é calma, impassivelmente independente, e que se eu insistir no encontro com hora marcada, fatalmente eu vou ficar esperando sentada a realização do desejo que me deu os canos (e eu até tinha levado um ramalhete de flores silvestres)
Fazer nada ao fazer. Fazer nada no depois de projetar. Nada. O projeto da pesca em si, se contemplando em bastar.
E ver as florezinhas do mato pelo caminho,
e a visita de algum passarinho, lagarto, minhoca
E a água da chuva serpenteando o beiral da casa para o nunca mais da gota
evaporando-se de tudo que um dia me iludiu e se vai a todo instante.
Permanecer, mudando, sendo a mesma de outro jeito. E ser feliz com isso.
O peixe da pesca vem sendo eu o tempo todo, desde sempre! E eu me distraindo com isca que peixe não morde! O peixe há de vir até mim muito aos poucos. Barbatanas, escamas, calda, olhos, esconderijos sem arpão. Sem fisga besta que pescador cansado de rede deixa apodrecer no meio do caminho do mar.
Na pesca do peixe que sou, nado no silêncio do tempo.
Defronte o mar meu bravio,  sendo dele, me vou esperando, preparando...
na certeza de ir fazendo tudo o que me clareia... Enquanto nada o passar do tempo.