terça-feira, 19 de dezembro de 2017







"Je crois par quelque ordonnance du ciel: nous nous embrassions par nos noms."

Montaigne - "De l'amitié"



Detalhe de "A primavera" (Sandro Botticelli)

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Transição inconclusa

Amor náufrago maneirista,
Claro-escuro alternado em dor e deslumbramento...

Um dia, me deixei tragar pelos olhos de um oceano de palavras mudas e cálidas.
Afundei.
Fui até o nascimento da última anêmona, no final da curva obscura do último abismo cintilante.

Morri.
Transmutei-me em rocha estilhaçada...
concha partida por entre mil faces marinhas.
Semblantes de peixes, olhos, guelras...garras, espinhos, escamas translúcidas...

Morri novamente, desta vez infinda pela última vez.
Hoje trago experiências de sobrevivente
de amores aprofundados em mágoa e encantamento.
Vivo absorta com a cintilância das  areias,
caminhando até o último cais

para lugar nenhum.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

como uma pérola antiga
no fundo de uma pequena caixa... no meio reluz
não é para agora a palavra exata
irretocável
o perfeito empoeirado.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Erato - musa da poesia

Diante de um mundo vil e tacanha,
Fico na cama com Camilo Pessanha!  😃

                                                                         "Erato" - Sir Edwuard Poynter - 1870



I.

Sente-se esmorecer como um perfume.
As madre-silvas murcham nos silvados
E o arôma que exhalam pelo espaço,
Tem delíquios de gôso e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.
.......................................................................
Eis tenho-a junto a mim,
Vencida, é minha enfim,
Após tanto a sonhar...
Porque enstristeço assim?...
Não era ella, mas sim
(O que eu quiz abraçar),
A hora do jardim...
O aroma de jasmim...
A onda do luar...

(Trecho de "Crepuscular")




II.
E sobre nós cahe nupcial a neve,
Surda, em triumpho, petalas, de leve
Juncando o chão na acrópole de gelos...
.........................................................................
E eis que resta do idyllio acabado,
- Primavera que durou um momento...


(Trechos de - "Phonographo")



sexta-feira, 17 de novembro de 2017

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Saúde das vistas.


Amava com desespero.
de um amor semi-cerrado, inflamado e ardente.

Esfregava-lhe as pálpebras pra ver se o amor saía,
que chegou mesmo a esfregar com deus
lacrimejando!

Estava cega de amor
Em condenação ao grau máximo da miopia afetiva...

Um dia,
enquanto chovia sobre a íris devotada,
começou a enxergar pequeno e devagar.

Era o colírio de nuvens pagãs que iam lavando lentamente
o basso daquela visão amorosa antiga.

Hoje usa letras de contato
Em forma de versos.

E de longe parece curada
Enquanto que de perto...





terça-feira, 17 de outubro de 2017

Aspirante de Perseu.

Alguma coisa morre. e estou em pleno funeral de algo que me embalava.
Pêsames a meus sonhos impossíveis. Sucumbiram soterrados e por isso a alma se queda asmática.
Sou esquife, as flores, as velas que se extinguem e a solidão que entoa preces a ninguém.
A extrema-unção constante de todas as ilusões. 
Ponho os devaneios deitados, a coragem ajoelhada, 
A dor em riste.
Também o corpo se consola imóvel num sono.
Pois ando comovida com meu olhar 
e os lábios...

Algum amor morre e estou em pleno luto em todas as vezes do sorriso.


*********************************************************************

"Sobre a relação entre Perseu e a Medusa podemos aprender algo mais com Ovídio, lendo as Metamorfoses. Perseu vence uma nova batalham massacra a golpes de espada um monstro marinho, liberta Andrômeda. E agora trata de fazer o que faria qualquer um de nós, após uma façanha desse porte: vai lavar as mãos. Nesse caso, o problema está em onde deixar a cabeça da Medusa. E aqui Ovídio encontra versos (IV, 740-752) que me parecem extraordinários para expressar a delicadeza de alma necessária para ser um Perseu dominador de monstros: 'Para que a areia áspera não melindre a angüícoma cabeça, ameniza a dureza do solo com um ninho de folhas, recobre-o com algas que cresciam sob as águas, e nele deposita a Cabeça da Medusa, de face voltada para baixo'. A leveza de que Perseu é o herói não poderia ser melhor representada, segundo penso, do que por esse gesto de refrescante cortesia para com um ser monstruoso e tremendo, mas mesmo assim de certa forma perecível, frágil." (Ítalo Calvino em Seis propostas para o último milênio)

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Hoje

"De amor em amor, vivo instantes verticais"
(Roland Barthes)

HOJE é outra vez dia para revisitar as ilusões em alto mar.
Imaginação tendendo sempre
a derivas

Há um nevoeiro sobre aquilo que sinto
e muita possibilidade de silêncio.

com as águas calmas como num rio
me balanço entre o que imagino e
o marulho fictício do que um dia predisse.

Marinheira sem remos, minhas mãos tocam apenas a água na sua versão fria.
Adiante barco solto

Aprendo agora  a estar entregue às gotas da chuva.
Bálsamo fosco que edulcora feridas, cortes, 
a imensidão indefesa.





segunda-feira, 25 de setembro de 2017

La Beauté







"La Beauté d'une nature merveilleuse, celle que précisement était le but de tous les efforts précédents.
D'abord, elle est éternelle. Elle ne connaît ni la naissance, ni la mort, ni accroissement, ni diminution. Ensuite, elle n'est pas belle pour une part, laide pour l'autre; belle pour ceci, laide pour cela.
Beauté qui ne se manifestera pas à lui sous forme de visage ou de main ou de rien qui participe au corps. Non plus que sous forme de discours ou de science; et bien en elle-même et par elle-même, coexistant toujours avec elle-même dans l'unicité d'une forme. Alors que toutes les autres choses qui sont belles, qui participent de cette Beauté en telle manière que leur naissance ou leur mort ne Lui apportent ni augmentation, ni diminution, ne l'affectent en rien."

(Socrate)




Doidos favoritos

"Algum velho da minha geração,
uns poucos doidos mansos, e quem mais?"

("Luar para Alphonsus" - Carlos Drummond de Andrade)




"Amanhã, vem-me entrevistar uma simpática inglesa meio louca [...] 
quinta-feira, vou tomar chá com uma portuguesa semi-louca, 
que tem medo de sair de casa; eu só gosto de gente louca, desses loucos mansos,
maníacos que a vida entristeceu, que ninguém atura, e que eu acho encantadores.
[...]
E as suas demonstrações são de maior compreensão que a da gente normal; 
e de uma certa categoria de amor, que os outros nem sonham.
Se eu não tivesse outras coisas a fazer, criava um salão de loucos
para conversar e fazer espírito, como no século 18."

(A lição do poema - Cecília Meireles) (carta LXXX)


quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Fragmento - O Ás de Ouros

O Ás de Ouros

I Acto

I Cena

[...]
D. Dama (com movimento quasi de dansa) - Tens saudade do teu Santo... (examina a medalha, foco de luz na mão dela)
V. [Valete] O meu Santo... (quasi triste) ... que vivia tão alto...
(Contemplam-se profundamente)
D. - Tão alto! (abaixa a cabeça) - pausa - Eu também subo tão alto... Mas sempre volto à terra... A terra está aqui, em baixo dos nossos pés... E estou sempre entre a altura e a terra... Tudo sobe da terra: o circo, o meu amor... já viste essas plantas duras, audazes, bordadas de espinhos ? Essas plantas que não precisam de nada? que nascem da areia?
Meu amor é assim. Mas tem uma carne suave, que estremece por ti, nada o alimenta, e êle não morre.
V. - Chegará também a minha vez de falar. Como tu falas do chão, eu te falarei do nosso vôo, do movimento puro, da nossa presença instantânea sobre o perigo. Não foi para isso que longamente nos construímos? Já viste êsses pássaros que sobem, sobem, e de repente deixam de mover as asas, e caem para longe - quem sabe para onde? Há para os homens uma espécie de liberdade assim. Que deve ser a dos deuses, se existirem... Uma independência da terra.

Cecília Meireles



terça-feira, 19 de setembro de 2017

"Velho estilo"

Coisa que passas, como é teu nome?
De que inconstâncias foste gerada?
Abri meus braços para alcançar-te:
fechei meus braços - não tinha nada!

De ti só resta o que se consome.
Vais para a morte? Vais para a vida?
Tua presença nalguma parte
é já sinal da tua partida.

E eu disse a todos desse teu fado,
para esquecerem teu chamamento,
saberem que eras constituída
da errante essência da água e do vento.

Todos quiseram ter-te, malgrado
prenúncios tantos, tantas ameaças.
Grande, adorada desconhecida,
como é teu nome, coisa que passas?

Pisando terras e firmamento,
com um ar de exausta gente dormida,
abandonaram termos tranquilos,
portas abertas, áreas de vida.

E eu, que anunciei o acontecimento,
fui atrás deles, com insegurança,
dizendo que ia por dissuadi-los,
mas sendo a sua mesma esperança.

No ardente nível desta experiência,
sem rogo, lágrima nem protesto,
tudo se apaga, preso em sigilos:
mas no desenho do último gesto,

há mãos de amor para a tua ausência.
E esse é o vestígio que não some:
resto de todos, teu próprio resto.
- Coisa que passas, como é teu nome?

Cecília Meireles - Vaga música (1942)

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Oportunidade.

Aluga-se criado mudo para livros bem apessoados.
Possível extensão da locação do móvel em caso de romance espesso ou não ficção.
Pernoites para releituras de contos e crônicas.
Cabeceira ilimitada para ensaios e poemas diletos.
O pagamento deverá ser efetuado em anotações parceladas quantas vezes necessárias.
É favor a entrega do estabelecimento na ocasião da chegada à página final.
Grata,
           a traça vegetariana.

Épica grama

O infinito esteve de braços abertos
na discordância embalando a ausência
Sentada a mirar o molhado da terra.

O quente da tarde e a sombra me contando histórias
do cimento tatuado de bolor.
O silêncio num céu azul e o descanso de todos os gritos.
Nada parecia amar o que minhas pequenas mãos desenhavam.
Nada por todos os arredores dos meus olhos.
O caminho de ferro das minhas lágrimas e o adeus invisível perpétuo.

As formigas também caminhavam em linha reta para lugar nenhum.
Meus pequenos grandes olhos vendo para cima.

Um amor que se herdou de música, noite e solidão.
Um amor...
Um amor incompreensível por aquela idade do diálogo dos hortelãs com a grama.

Deixaram caído meu catavento, esquecido junto da roseira cujos espinhos eram tímidos.
Esqueceram de saudar meu amor que não se disse, por medo.

O quarto minguante da lua na ponta dos dedos foi visto por meu olhar perdido.
O vento calou minhas sílabas infantis.
Dormi. Porque sempre me fecharam os olhos.

E não mais.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Teimosa

Esquece: Assopra!
acendeu
Esquece: Assopra!
acendeu de novo
Esquece: Assooopra!!
acendeu outra vez
Esquece! Ass :
 acend...
Assopra!  Assopra!!

Acendeu.
Lembrança acendeu.

Esquece...








quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Despertador vocabular

Às vezes, ocorre-me de despertar com uma espécie de frase ou verso sussurrado.Mal abro os olhos e as palavras estão lá - sentenciadas. Talvez um apelo, um resquício do bocado do sonho que ficou por último, aquele atrasado fim de sonho apressado pela consciência bocejante.
Hoje foi assim. Antes de abrir os olhos, mas já sentindo o corpo despertando, algumas palavras emaranharam-se à fronha, ao cobertor. Enrolaram-se no lençol. Participaram do claro-escuro, do frio-quente que é acordar. 
Muito provavelmente, a experiência seja mais interessante do que as frases ou os versos ou sei lá o que quer que sejam esses termos:



O corpo - Asa concreta de betume
                           Linguagem




Registra o lápis na caderninho do criado mudo, manuseado sonolentamente. Ô, pobre!
Pronto.
Acordei?
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quinta-feira, 27 de julho de 2017

Ponderações coxas

" - eu mesmo sozinho conversei. Ser forte é parar quieto; permanecer."
(Guimarães Rosa)



A angústia tem elo com o efêmero, enquanto a tristeza concerne ao eterno.
A angústia é intermitente, quase concreta 
e a tristeza carrega a duração consigo, se escondendo. Em disfarce.

A angústia vai e vem, 
bate a porta que pensávamos fechada 



e nos sufoca.







terça-feira, 25 de julho de 2017

O bosque sagrado

Minha existência hoje talvez possa ser melhor definida por lágrimas. Comoção, vibração...
As letras não satisfazem o que gostaria de expressar. Duvido que algum dia também farão sentido quando me lembrar. De que nesta tarde um Força indefinível se dirigiu a mim e permitiu que eu a contemplasse numa pequena porcentagem. A parcela ideal e exata que meu ser - em constante aprendizado, erro e transição é capaz de suportar.
Mesmo assim, foi muito! E, mesmo passadas algumas horas, estou em reconstituição.
Talvez tenha sentido meus inúmeros términos e renascimentos de mãos dadas ali. Talvez tenha vislumbrado a Sinfonia entre a Vida e a Morte.
A Força daquela gigante, a inominável Benevolência que não ouso explicar porque não compreendo.
Tudo em mim vibra e se imanta. Se magnetiza.
Talvez também doa porque meu ser se lembre do que ainda não saiba em palavras.
Tudo vibra, tudo ressoa na ausência das palavras.
É tanto Tempo. Uma magnificência de encontros que a mim só é permitido ver com o sopro que me anima, com a luz que me possibilita estar em movimento e compreender intuitivamente.
Estive num Templo a céu aberto. Numa permanência vitalícia. Estive neste não sei onde que habita em mim e que me é ainda insuportável por conta de toda a Vida que existe.
Eu não sei de nada.
Eu só pude sentir. E ainda sinto por lágrimas. Por lágrimas que me banham me derramando em êxtase sobre minha pequena própria existência.
É difícil acreditar nesta Grandeza Inevitável. Justo meu eu habituado à pequenez. Justo meu eu acostumado a crer na fragilidade. Não coube em mim tanta Grandeza.

Eu ainda me derramo.





                                                     "Jupter et Sémélé" - Gustave Moreau

                                                "O bosque sagrado" - Arnold Böcklin

sexta-feira, 7 de julho de 2017

L’enfant assis sur le tombeau de son vent.

Je suis un enfant. Je suis toute seule, parce que je suis une fille.
Je regarde du côté, du côté droit tout bas. Puis, je bouge mon regard vers mes soupirs et je le tourne.

Mon âme  et sa toux. Silencieuse et profonde. La terre sèche de mes aventures. Mes larmes la touchent et mon âme y reste.
Il ne me faut pas les ruines sans merci des ceux-là qui ne chantent. Mes ruines gravitent là. Et puis rien.
Ce n’est pas non plus le coucher du soleil. Je sais pas quelle heure il est dans le temps de noces des cieux. Du jaune, du noir, du gris, du rouge se marient devant mes pensées.

Mon pied droit fait des cercles sur la surface de la terre qui empoudre mes passades. Mais, je suis assise maintenant. Sur... sur...
Il y a  du vent de mon deuil.
Mon front a sommeil. Et mon profil s’enchante de l’ambre que j’invente.
La douleur bâille et tout meurt tout le temps. Tout se défait ; c’est le futur rien qui n’empêche pas la beauté.

L’éblouissement de mes ongles solitaires se touche. Au sein du soi-même.
Pas de pourquoi de m’hâter. Parce que je suis là en train d’être aimée de la poudre.

Et fin.


Caspar David Friedrich, Evening Landscape with Two Men, 1830-35 (The Hermitage, St. Petersburg)


quarta-feira, 10 de maio de 2017

Variações

Houve muito vento.
Vento. Vento forte. Ventania!
De uma ventania de bater janelas velhas e moças.
Foi como contemplar a força da natureza enquanto descontrole.
Pobres folhas tenras... pobre renda portuguesa... pobres folhas sem nomes... pobres folhas secas e bastardas.
E de ventania fez-se ciclone às vezes. Girando casas e vacas. Vitrolas, moscas desavisadas e também passarinhos.
Meu cata-vento manco. De pás inválidas.
Poeira. Terra ainda cobrem os olhos de fuligem
e os olhos fixos de braços cruzados.
É como contemplar a beleza das tempestades. A beleza dos furacões transtornados pelo efeito concomitante das brisas.
E o galo dos ventos não anuncia a hora.
E a rosa dos ventos fica zonza com tamanho barulho de sopro.

Houve muito vento.
Vento. Vento forte, vento havia.
E ainda há tempestades de papel de seda
com toda a escrita.

"Tempête de neige et mer" - William Turner

sábado, 6 de maio de 2017

"nele descansou depois de toda a obra que empreendera na criação."

O vazio.
O branco incolor da tentativa de alguma expressão.
O pensamento se cala e, no entanto, supõe alguma consciência de algum ritmo indiscernível.
Na rua. Sangue de pólen e veneno. Na rua. Uma árvore ontem abraçou o interstício entre céu e asfalto.
Na rua João de Barro é sem teto. Mendiga algum pedaço de terra por aí.
As aves, os insetos, a terra. Tudo está manchado de aço e dentes. Tudo se atropela pela retidão do alicerce.
Quem a mata?
Quem o verme?
Quem deixa suas mãos e braços cansados?
Quem se caleja e deixa pela rua um gosto de amputação lenta?
Tudo se mancha de esquecimento. Tudo se suja, enquanto a respiração não pára.
Há baile na rua agora. Regado a um canto lúgubre de mulher que se veste de deus que crê em sua voz (crê?)
E nada medra.

Escuto.
Estou ordenada a ser servida a este presente que elaboram, ainda que não se dêem conta da profanação desta festa.
Celebram.
Comem.
Engolem.
Pó.
Regurgitam clorofila pisada.
Escuto. Ouço. É necessário estar no agora daqui.
Sou parte da plateia desta arena.
Ao espetáculo hediondo meus aplausos invertidos. Todo meu reconhecimento anti-horário.
Estou presente. Ouvinte intimada.
Minhas mãos escrevem o que nem direito encerram.
Sou eu. Raízes e galhos mutilados.
Eu sinto muito todos os meus pêsames.
Morro também com o peso da chacina de lei por terra.
Sou esta árvore.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

sábado, 22 de abril de 2017

Por onde andará a minha alegria?

"Querer bem as minhas alegrias." (Guimarães Rosa)

"Retirai-vos em vós, mas, preparai-vos primeiramente para vos receber. Seria loucura fiar-vos em vós mesmos se não sabeis vos governar." (Montaigne)


Eu não posso ser a sua alegria. Nem você a minha! O que podemos fazer é trazer para perto a sua alegria da minha, não é mesmo? Mas hoje, eu não sei aonde a minha alegria foi parar. Acho que foi dar uma volta e até agora não voltou pra casa. Onde será que ela está numa hora dessas?
É bem provável que esteja em algum lugar bucólico... É a cara da minha alegria fazer isso... 
Um lugar bucólico em que o sol não é quente. (Aquele quente que torra as folhinhas e a paciência da gente). Um lugar em que há montanhas robustas e altas. Um lugar-comum paradisíaco onde o capim é extremamente cheiroso e muitas borboletinhas pequeninas. Talvez sejam vermelhas ou amarelinhas. Existe um córrego ou um riacho, minha alegria não me comunica ao certo. Mas, há um caminho percorrido por água azul geladíssimo safira. A água se desregulariza por conta das pedras que não são tão grandes não!
O sol aquece à maneira como eu escolho que ele aqueça. E não há ninguém comigo...
E é sempre assim! Sempre que imagino o estado da minha alegria, acontece o sentimento espaço da solidão!
Talvez minha alegria seja assídua leitora de Rousseau, embora não saiba os devaneios de cor e salteado. Minha alegria talvez ande discípula (ou talvez, sempre o tenha sido inconscientemente) dos ensaios de Montaigne e acredite que minha alma possa mesmo se fazer companhia.
Minha alegria anda longe...bem dentro de mim, à espera de que minha alma se prepare - cada vez mais aos pouquinhos - para enfim o reencontro cara a cara.
Minha alegria anda escapando para algum lugar de mim que conheço muito muito pouco, pois ninguém me deu qualquer mapa ou planejamento de nada. Muito menos de como saber do paradeiro da minha alegria! 
Ninguém me disse "Vá para esquerda, a alegria tem cara de ser canhota!" ou "Vá para direita que é onde permanecem os eleitos!" "A alegria pertence aos eleitos!!!"
Ninguém aqui do lado de fora, onde há ruídos que não convêm de forma alguma à minha natureza, sabe dizer se já se sentou ao lado da própria alegria para um bate papo em silêncio absoluto! Aliás, as pessoas daqui do lado de fora também não falam de suas tristezas, nem mesmo na intenção de aprofundar o conhecimento de que não entendemos de nada! As pessoas do lado de fora parecem estar certas. Mas, de que exatamente?
Enquanto isso, respeito o conhecido destino ignorado da minha alegria, pois é certo que  não sei onde ele fica no momento! Entretanto,  suspeito da cara dele: as maçãs do seu rosto ficam avermelhadas toda hora com a revoada das borboletinhas.

terça-feira, 11 de abril de 2017

Desarticulações.

O ritmo cadenciado deste cursor faz com que diante de minha imaginação se abra uma espécie de portal. E tal qual àqueles dizeres que se encontram nas catacumbas, nele existem algumas palavras-convites: "Expresse-se".

Eu poderia contar sobre várias coisas: como às vezes tem sido difícil ser eu mesma, no equilíbrio/desequilíbrio em cima da corda bamba de todos os dias; eu poderia em vão dissertar sobre minha ignorância sobre as posições astrais, sobre a metafísica planetária vigente, bem como suas influências sobre este ser pensante excessivo; eu poderia lembrar por meio da grafia das letras que foi numa Semana Santa longínqua que li pela primeira vez Sonhos de uma noite de verão. 
No entanto, decido discorrer sobre o Amor.
Sobre qual deles? Pois há tantos... e tantos são um só. E, no entanto, desconhecemos profundamente todas as naturezas.
Na minha loucura que deseja ser poética a todo instante, penso que talvez todo ser humano deveria cultivar  - pelo menos - dois amores: Um amor compartilhado, possível; outro amor em estado de suspensão (na mais suprema ambiguidade que este termo suscita).
Há o amor de todo os dias e noites e manhãs. O amor do desafio da redescoberta. O amor que compartilha torradas e que não faz silêncio quando deveria. O amor que dorme ao lado quando os olhos despertam e que nos abriga. O amor que acolhe e briga de vez em quando. Que entra e sai de crises. Que caminha - mesmo que não saibamos muito bem pra onde.
Esse amor nos brinda com sua segurança. E nos convida a pensar sobre sua ilusão de se por sempre da mesma forma.

O segundo amor: não existe. Ou melhor, existe! Ou antes: existiu, deixou de existir, existirá pretérito em alguma reencarnação milenar. Parou de ser real futuramente. Amor de verso livre, rima branca, pobre, burguesa, aristocrática, depauperada. Amor de luar, não de lua. Amor... que se senta nas folhas noturnas de uma árvore que um dia já deu flor. E que não espera pela primavera de forma consciente.
Que tinge de sentir porque assim o escolhemos.
Que tinge de lembrar porque assim o aceitamos.
Amor pra se ouvir na canção o que se inventou e onde nos perdemos. Porque é recusa do atalho - essa sim consciente.
Amor pontiagudo. Pungente, pingente, cortante diamante. Estrela de qual grandeza maior que o sol?
Eu pontuo o finalmente sem conclusão. Estou dividida entre a introdução e o final.
Não finalizo nunca.



Detalhe:  "Triunfo de Vênus" - Bronzino (1540-1550)



quarta-feira, 15 de março de 2017

Improviso sob o "Improviso do amor-perfeito"


Naquela nuvem naquela, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.

(Cecília Meireles)


Pensar com o sentimento numa parcela de ti
que me é fogo manso guardado sob o marrom prateado das praias  
que saúdam meus pés,
tão gentilmente...

Eu sou o amor por ti
quando o fôlego absorto da lembrança,
me põe num fechar de olhos.

E meu peito dança
com a folhagem ensolarada do outono.

E quando me sento admirada com a litania das lágrimas que se guardaram
atrás do pêndulo desta hora.

Canto surdamente uma canção para mim
para ser este amor que invento.

Consorte.
De espera nenhuma.

quinta-feira, 2 de março de 2017

Fugindo da Górgona parte centésima.

Hoje passei o dia inteiro fugindo da Górgona. Essa Medusa localizada em parte ignorada no meio do peito, que me provoca uma espécie de azia, enjoo ou síndrome hepática emocional.
Talvez seja ansiedade que adoça demais os olhos. Talvez  eu esteja mesmo bem guarnida de ansiedade - essa Górgona ora me alimenta ora me conduz ao jejum!
Para não encarar a Górgona e não virar pedra, vou enumerar as estratégias das quais lancei mão o dia todo:

- Dei uma de monja copista. Revisitei textos amados e passei muitas horas a copiá-los. Ainda hoje, descobri que os monges medievais copiavam as escrituras bíblicas como forma de dizimarem o tédio. Era um benefício duplo: além de alimentar a alma com sabedoria, o tédio também era rechaçado. (Identifiquei-me ou não?)

- Andei descalça no chão molhado. No asfalto mesmo. Depois na grama, na terra, na lajota me concentrando na sensação que essa simples ação me provocava.

- Como o Zeca assistiu ao filme " Em nome de Deus" - filme em que se conta a história de amor de Heloísa e Abelardo - claro que me emocionei mais um bocado. Assisti até a parte em que os dois foram flagrados. Depois, a coisa só piora! Fugi. No lugar de continuar a assistir, fui pesquisar em francês a famosa história.

- Na pesquisa sobre Heloísa e Abelardo, fui parar num vídeo no Youtube em que um escritor francês chamado Jean Tuilé reconta a história desses dois! Descobri que há um livro chamado Heloïse ouille e que Heloísa era pra lá de prafentex e que Abelardo era praticamente um rockstar da época. Fiquei surpresa com a conexão das coisas. Pois o mesmo Jean Tuilé é autor de Le magazin des suicides - que na verdade é um conto refeito para cinema. (Legal, hein??)

- Ouvindo francês, muitas palavras foram conhecidas ou revisitadas. Dentre elas, o termo caveau (Momento do autoquestionamento se tenho ou não uma veia meio gótica. Será?)Ouvindo caveau, descobri também outro tema muito interessante para se pesquisar que é o chamado Miracle d'Abélard! Parece que quando os restos mortais de ambos se encontraram ou por misticismo ou irregularidade do solo, o esqueleto de Abelardo literalmente abraçou o resto dos ossos da amada! (Achei belo, misterioso, estonteante pra dizer a verdade). Só não pesquiso isso hoje porque já estou cansada. Corri demais da Górgona. Mas, se paro eu ainda doo... Por isso estou aqui escrevendo este montão de coisa! (Com ou sem sentido???)

- Abelardo, Heloísa, ossos, cova! Lá fui eu parar em outro site francês em que havia a explicação estrutural das covas! Bem: vi figuras explicativas sobre a organização dos caixões e conheci o termo "Vazio sanitário". Essa expressão impressionante me deu a conhecer o óbvio: que existe tal separação dos corpos da superfície... Foi aqui que duvidei se quero mesmo ser enterrada! Achei triste, superficial, construído... Contudo, a ideia da cremação nunca me atraiu! Entendo como sacanagem a exposição da microfauna corpórea à fome! Bem no momento do banquete! Cadáver é carne dada aos vermes! Não é alcatra pra churrasco de crematório! (rsrsrs...que coisa mais ridícula de se escrever!)

- Ah, já estou cansada e já bocejo... Tento parar de me entreter. Será que a Górgona já dormiu? Hein? Hein? Heinnnnnn?????? Não! Continuo a doer... Hum...o que fazer, o que fazer? Bem, me deitei no chão. Tentei uma conexão com o superior. Melhorei! Deu mais gás pra correr...Ufa! Górgona imensa!

- Fui ouvir Canto Gregoriano. Abelardo, Heloísa, Górgona, dor... Pensei na claridade que estas entoações meditativas davam à época! Funcionou comigo! Foi lindo! Senti-me mais apaziguada! Dá-lhe Canto Gregoriano então... Fui pesquisar sobre a origem do Canto Gregoriano! Descobri Papa Gregório, descobri século VI, descobri o monastério em Silos na Espanha... E a Górgona atrás de mim ainda! Ai...

- Bem, continuo adepta do silêncio porque hoje falar com as pessoas está dolorido pra mim! Enfio-me aqui na minha "Arrière-boutique" - como diz Montaigne - quer dizer: no meu cantinho!

- Antes de Heloísa e Abelardo, reli "Da solidão" da Cecília para mais tarde pensar em escrever sobre seu elo com o ensaio de Montaigne  "Sobre a solidão". Anotei algumas coisas, alguns pensamentos, escrevi...enfim...vali-me de novo das letras como estrada, "pernas pra que te quero" pra fugir.

Estou cansada de tanto correr com a cabeça. De tanto me manter ocupada! De tanto não encarar esse monstro que é minha Górgona magnífica! É... a glote lacrimeja e no meio do peito não tem ninguém...ou tem um único sobrevivente que ainda grita. E que somente eu mesma ouço!
Estou com a mente calejada de tanto correr. Estou com cãibras nas sinapses... Tô quase na linha de chegada do dia 02 de março para o dia 03 e a Górgona que me espia, espreita, aparece na minha frente e que me olha! Franze ainda mais o cenho. Ri! Meu Deus!!!
Bem, meus olhos já pesam ainda mais! Daqui a pouco: naninha! Espero não reencontrar a Górgona sentada numa poltrona de veludo vermelho no meio do meu inconsciente, entoando Canto Gregoriano ou travestida de casal maluquete medieval! 

Cenas do próximo capítulo. Em breve! Só queria mesmo era um comercialzinho pra descansar.

(Pra variar um pouquinho, ilustro a minha Górgona com a Hydra. Só pra diversificar... O mostrão tá aquático hoje...)


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"Caturrinha"

"O real é aquilo de que não se pode acordar"  (Valéry) 

Um viva eterno à imaginação e às suas maluquices!


*Caturrinha sempre desejou morar em lugares impossíveis: dentro dos pianos, embaixo das mesas, entre as rodas dos grandes relógios, e **nos braços do lustre, que era uma árvore de cabeça para baixo. Morar - para ela - era participar profundamente de um certo mundo. As casas são apenas cascas: fachadas, telhados, paredes... Não, Caturrinha não queria cascas: queria o sabor e o perfume. Queria o segredo. Na região do segredo encontrava linguagem, companhia, conversação.
   Na verdade, nunca se preocupou com a maneira de se chegar a este mundo, porque a bem dizer, para ela, não havia diferença bem nítida entre nascer e não nascer. Mas, quando lhe disseram que chegara dentro de uma abóbora, achou a coisa mais absolutamente natural do mundo. Talvez tivesse lamentado vagamente - muito vagamente -  não ter sido num vidro grande de farmácia, reclinada naquela frescura líquida e já vendo as paisagens aparecerem através de curvas paredes amarelas e azuis.
   Mas também isso não era motivo para apreensões nem nostalgias, pois bastava-lhe querer passar a residir nesses lugares incríveis. Habita muitas horas o recesso de um intrincado desenho do tapete, e uma vez descobriu como se pode viver dentro de uma lágrima  equilibrada nas pestanas.
   Inúmeras vezes adormeceu naquele prado verde que se vê no meio da lua, e por onde pasta, movendo a cauda, o cavalinho de S. Jorge. Nesse tempo, sua vida era ainda muito estática: apenas descobria uma nova morada, ali pousava, e ficava entretida. Melhor seria dizer contida em sua distração, como o orvalho na sua forma. Foi o tempo do seu êxtase dentro das cores, das transparências, das texturas. Por acaso já moraste, meu irmão, dentro do anil? dentro da cânfora? na minúscula ilha submersa na escuridão de um caroço de ameixa? Pois esses eram os seus profundos caminhos pensativos.
   Depois em tempos de mais atividade, patinou pelas alamedas das fibras das madeiras, dos veios dos mármores, - e os labirintos que as formigas apenas superficialmente conhecem nas folhas dos cóleos e dos tinhorões não tinham estradas nem túneis que não houvesse percorrido, embora servissem apenas de mapa, e as viagens fossem dar a paragens de uma realidade total, mas sem fim e sem nome: como planetas ainda por localizar.
   Quando diziam que Caturrinha sonhava, ela não entendia bem. Pois como nascer e não-nascer, o sonhar e o não-sonhar nunca lhe apresentaram contrastes ou oposição. Tudo lhe era naturalmente fluido e unido, com pequenos caprichos, de vez em quando, como água que forma bolhas, estrias, mas vai andando, e reabsorve suas pequenas, graciosas, rápidas e gratuitas diversões.
   Naturalmente o circo era o ambiente mais compreensivo de todos. O estranhável é que a humanidade inteira não andasse em trapézios, como as aranhas, e os homens não pudessem torcer o peito para as costas quando entendessem, nem pudessem pular de um telhado para outro, de uma praia para outra praia, de uma estrela para outra estrela. Nesses momentos, quanto todos se espantavam, e batiam palmas e arregalavam os olhos, sentia um certo desprezo melancólico, não se sabe contra quem. Fitava as pessoas que celebravam aquelas habilidades como coisas excepcionais. Ela não as entendia. Positivamente, não entendia as pessoas grandes. E, com certo desdém, também lhe inspirava uma espécie de surda pena.
   Às vezes dizia: "Hoje sou peixe" ou "Agora estou sendo sempre-viva" -  e as pessoas crescidas faziam um muxoxo e resmungavam: "Coisas da Caturrinha." Diziam-no com uma expressão de certa piedade. E ela os achava tão bobos, tão bobos... -  e continuava a mover suas nadadeiras, dóceis, transparentes, como franjas de água, e continuava a crispar num vento invisível as amarelas escamas de suas flores sem morte.
   Houve um tempo em que foi violão. E quando respirava sentia-se toda sonora. Mas ninguém nunca reparou nisso. Morava num guarda-roupa enorme, com o peso e o odor de uns vestidos imemoriais pousados na sua madeira. A qualquer escorregar de uma fímbria, acordavam músicas. E enquanto estava sendo assim violão, em toda a sua plenitude, acontecia perguntar-lhe a professora: "Vamos, Caturrinha, quantos são os reinos da natureza?" "Ah! - dizia -  uma porção..." E punha-se a enumerar, sem pressa: havia o reino dos cavalos de estrela na testa... o reino dos anões de barba verde... o dos sapos mágicos... o dos touros com asas...
   A classe inteira ria. Eram muito estudiosas, aquelas meninas. E a professora passava adiante, não sem alguma consternação: "Ah... esta Caturrinha..." Mas como era a menorzinha de todas, faziam-lhe festas, esticavam-lhe os cachos do cabelo, davam todas as demonstrações de permitir que a sua maluquice prolongasse por muito tempo. Afinal era tão engraçada!
    Mais tarde é que tudo mudou um pouco. Perguntaram-lhe: "Como vai ser a sua casa, quando você se casar?" Ora essa! Dizia: "Translúcida." "Translúcida, como? De vidro?" "De vidro, de pétala, de pálpebra..."
   Não, depois de uma certa idade, todos devemos ter uma certa conveniência com as palavras. Uma criança é uma criança, vá lá, não sabe o que diz. Mas agora, depois de grande, vir uma pessoa dizer com ar de seriedade: "estou viajando em redor de uma vela de cera" - não, isso já é pedantismo ou loucura. Depois de certa idade, é proibido possuir imaginação.
   E as amigas de Caturrinha tiveram casas curiosíssimas - com varandas prateadas, móveis com muitos espelhos, cortinas de muitos feitios, papéis pintados, tapetes como caleidoscópios, colunas como grutas, aquários com peixes dançantes... E nunca nenhuma delas viu a casa que tinha. Sabiam receitas de limpar mármores, de polir madeiras, de tirar manchas de veludo, e nunca descobriram os países soterrados naqueles mármores, as dinastias que desfilavam nos íntimos arabescos daquelas madeiras, as farfalhantes florestas, com plumas e cascatas, aprisionadas nos seus veludos.
   Nunca dormiram dentro de seus pianos, lá onde a música ainda é um acorde de aromas de madeira e metal. Nunca esperaram o entardecer com o rosto encostado a um vidro, vendo o diagrama da vida na névoa da respiração. E perguntavam, compadecidas: "E você, Caturrinha?" "Eu? Agora estou morando dentro de uma palavra. É maravilhosa, tem quinze declinações." E começa a decliná-la, exatamente como fazem os contorcionistas nos circos: um músculo que retesa, outro que se afrouxa, um joelho que sobe, um pé que aparece noutro lugar, a mão que tateia procurando solo, os olhos que vão surgindo, rampantes, como dois sáurios... E advertia: "mas ainda faltam outros casos: o adverbial, o prossecutivo, o mutativo..."
   E as amigas ficavam imóveis, um pouco. Depois falavam em comprar outras cadeiras, mudar as cortinas, arranjar nova casa... Porque as casas são pequenas ou grandes, caras ou baratas, em lugares elegantes ou em bairros sem distinção... "Não acha, Caturrinha?"
   Mas os seus pontos de vista eram sempre esquisitos. "Bem, é conforme... Por exemplo, as nozes são um pouco escuras, mas têm aqueles tabiques muito delicados, e aqueles marfins macios e crespos... O ovo já é mais translúcido, e muito doce de percorrer, de uma câmara para outra... Pensando bem, prefiro o caramujo. É uma usina de sonho, e sua rampa é firme como mármore e suave como seda..."
   Todos chegaram, desse modo, à conclusão de que Caturrinha não levava nada a sério. Uma vez que não era louca, e isso positivamente não era, só podia dizer aquilo por gracejo. E era uma pena,  que estivesse sempre gracejando assim...
   Pois as amigas de Caturrinha pensavam com aquela gravidade da criada que lhe ponderou: "Madama, eu, pra falar a verdade, sou arrumadeira, mas só gosto de me empregar em apartamento que tem entrada de mármore e elevador dourado..." E ela - meus irmãos! -  estava morando justamente naquela época, nas letras do alfabeto hebraico! - que lhe pareceu muito plástico, porque tinha elefante, casa, caramelo, porta, água, peixe... - era um longo bazar, no qual se podia ir sonhando longamente, de soleira em soleira...

(Cecília Meireles. Rio de Janeiro, A Manhã, "Letras e Artes", 9 de fevereiro de 1947)


*Caturrinha (caturro): teimosa, obstinada.
** Destaque às partes que nos causam mais embasbacamento. 

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Reflexões foliãs

"Carnaval, carnaval, carnaval... Fico triste quando chega o carnaval..."




Se me perguntarem se estou animada para o carnaval, responderei sempre que sim.  Afinal, todo ano venho fantasiada de quaresma antecipada e, para corresponder ao quesito "originalidade", é preciso caprichar na aura 'Quarta-Feira de Cinzas' antes mesmo de rumar para a apoteótica melancolia da 'Sexta-feira da paixão'!

O fato é que - por infelicidade ou  inconveniência de consciência - tenho mais facilidade para constatar a efemeridade das coisas nessa época de carnaval (aliás, creio que isso não seja nenhuma novidade). Mas, quem disse que procuramos por ineditismos?

Olho para a urgência da felicidade organizada nos blocos, para o decreto da pressa da euforia.
Para o resto frouxo das serpentinas penduradas, para os solitários copos plásticos semi-inertes pelo chão.
E os confetes  sempre estão pingando por toda a parte a nostalgia da sua passageira especificidade...

Minha alma é aquela imensa alegoria enguiçada cheia de Pierrots sentados. Ela se põe entre o devir e a conclusão da festa, bem no ermo da folia.

Não  fujo mais desta fantasia e assumo aqui o despojo das minha máscaras, a cadência soturna das minhas marchas.

Sou  também fogo de purpurinas amarelas, azuis, furta-cor. Mas, não hoje!
A mim resta perceber agora o peso secular da chegada destas terças-feiras gordas, naturalmente tão prenhes de significados.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Anti-último

Um espinho de roseira
Entrou há tempos e rasga ainda
aos poucos.
Hora pára.
Hora medra secar
e desaparece.
Hora volta
ludibriando a cicatrização frágil
que nunca se deu.
Noto os dias em que a ausência parece definitiva em mim.
até de uma alegria  tipo macchiato
Fico então feliz macchiata
tipo maré baixa.
Mas, mas...
desvirtuo o sagrado das promessas
se escuto uma canção qualquer
que lembre.
Que num dia europeu ouvi falar de um nome. E tudo se desfaz.

Sinto-me a última sozinha
De uma solidão sem portas.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Estrangeirices


"Às vezes me apaixono por uma cor e passo a viver dentro dela. É esquisito, hein? E quando compro um vestido ou um outro enfeite, nunca é pelos motivos usuais: é sempre por uma maluquice dessas." 
(Cecília Meireles em A lição do poema. Carta  a Armando Cortes-Rodrigues. Carta de número 64)




Acho que não é somente  uma sensação pessoal me sentir de vez em sempre forasteira.
Há de existir muitos seres humanos que se sentem participantes de lugar nenhum neste planeta Terra.
Caminho.
Encontro pessoas. Encontro pessoas? Tá, tudo bem. Encontro pessoas! Pessoas agindo de formas absolutamente estranhas em relação ao que considero relativamente conhecido.
Ou talvez seja eu aquela de formas absolutamente relativas frente a todos esses estranhos conhecidos?

Hum!

O fato é que hoje à tarde olhava para a grama crescida do meu jardim. O vento pendia aqueles fios verdes que mais pareciam cabelos lisos e verdes e rebeldes para o alto... O sol. O céu que a todo momento mudava de opinião em relação à chuva, às nuvens, ao azul...

É...

"Sinto-me nascida (licença, Pessoa) a cada momento para eterna novidade do mundo" ! 
Sempre! 
E constatar a importância dessa sentença pra mim ajuda na aceitação de me flagrar por vezes e vezes no mais completo e  puro estado de embasbacamento!

Então, para honrar meus pregressos, atuais e futuros estranhamentos nessa Terra, resolvi me lembrar de algumas atitudes e pensamentos estranhos que me visitam. Uns com alguma frequência, outros nem sempre aparecem... Mas, independente do número de vezes que eu os percebo, eles estão por aí! Firmes e fortes na intenção de me dispersar! Então:

Estrangeirice nº1:
Ao comer mamão papaia percebo que, embrenhando-se na polpa da fruta,  a colher faz nascer um movimento semelhante às grandes ondas antes da arrebentação. Sim! O movimento da colher no mamão papaia sempre me dá onda de mar da cor alaranjada! E eu adoro isso! (Estranho, não?)

2. Estrangeirice nº 2: 
O pó de café molhado no filtro da cafeteira é igual a barro escuro ou a chocolate liquefeito! Quando se parece a barro escuro, sempre acho que daquele pó de café molhado sairá uma minhoca ou algum broto! E quando se parece a chocolate liquefeito, tenho vontade de colocar aquele pó de café molhado na boca ou aproveitá-lo na massa de algum bolo que sei que não irei fazer porque não gosto de cozinhar. (Mas, a ideia do bolo não deixa de ser bonita e nem menos bizarra.)

3. Estrangeirice nº3: 
Desde criança, o fato de tirar o sabonete do invólucro  sempre me  faz lembrar de picolé de côco cremoso! Bem, já sei que sabonete Lux Luxo não é nada saboroso, pois aventurei-me a prová-lo lá pelas casa dos 8 anos e não gostei! Definitivamente,  a velha questão da essência e da aparência nesse caso! (Papo de maluco).

4. Estrangeirice nº4:
Ao lavar uma peça de roupa à mão, o contato da roupa com a água, mais o sabonete me mostra certas ondulações sutilmente oleosas. Ficam ali alguns caminhos naquela água, caminhos semelhantes  a longas serpentes aquáticas e transparentes. Mas, tem que prestar muita atenção pra ver! É mais fácil quando em água quente ou morna! (Interna!)

5. Estrangeirice nº 5
Para mim, a diferenciação da personalidade dos livros também se dá pelo cheiro. Livros espessos e de letras miúdas podem ter frases impressas em odor mais grave, enquanto que o cheiro dos poemas amados tem grandes chances de emanar de suas rimas perfumes longínquos e estranhamente conhecidos. (Do simpático nada a ver com nada).

6. Estrangeirice nº 6:
Voz de cantor e cantora tem cor! Assim como pode ser opaco ou brilhante o som de um instrumento musical. Na música "Tenha calma", por exemplo, o som do trompete tem  cor de ouro envelhecido. E a voz da cantora Maria Bethânia tem cor de prata enluarada. É perfeito o encontro dessas duas nuances! (Piração na batatinha e viagem na maionese total).

Certamente, há de existir estrangeirices muitas que eu ainda nem tenha percebido. Outras serão inéditas, bem ao gosto do momento do velho sentir-me forasteira por estas terras. 
E, aliás, em matéria de estrangeirices, todos nós nos correspondemos, não é mesmo? Como já bem disse minha mamãe Cecília Meireles:

"Quem deseja me ouvir nestas paragens
onde todos somos estrangeiros?"

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terça-feira, 17 de janeiro de 2017

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Palavra e Forma




"A beleza de um corpo nu, só a sentem as raças vestidas."

Livro do desassossego


" La Grande Odalisque" - Jean A. Dominique Ingres (1814) - Musée du Louvre