quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Fragmento - O Ás de Ouros

O Ás de Ouros

I Acto

I Cena

[...]
D. Dama (com movimento quasi de dansa) - Tens saudade do teu Santo... (examina a medalha, foco de luz na mão dela)
V. [Valete] O meu Santo... (quasi triste) ... que vivia tão alto...
(Contemplam-se profundamente)
D. - Tão alto! (abaixa a cabeça) - pausa - Eu também subo tão alto... Mas sempre volto à terra... A terra está aqui, em baixo dos nossos pés... E estou sempre entre a altura e a terra... Tudo sobe da terra: o circo, o meu amor... já viste essas plantas duras, audazes, bordadas de espinhos ? Essas plantas que não precisam de nada? que nascem da areia?
Meu amor é assim. Mas tem uma carne suave, que estremece por ti, nada o alimenta, e êle não morre.
V. - Chegará também a minha vez de falar. Como tu falas do chão, eu te falarei do nosso vôo, do movimento puro, da nossa presença instantânea sobre o perigo. Não foi para isso que longamente nos construímos? Já viste êsses pássaros que sobem, sobem, e de repente deixam de mover as asas, e caem para longe - quem sabe para onde? Há para os homens uma espécie de liberdade assim. Que deve ser a dos deuses, se existirem... Uma independência da terra.

Cecília Meireles



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