quinta-feira, 2 de março de 2017

"Caturrinha"

"O real é aquilo de que não se pode acordar"  (Valéry) 

Um viva eterno à imaginação e às suas maluquices!


*Caturrinha sempre desejou morar em lugares impossíveis: dentro dos pianos, embaixo das mesas, entre as rodas dos grandes relógios, e **nos braços do lustre, que era uma árvore de cabeça para baixo. Morar - para ela - era participar profundamente de um certo mundo. As casas são apenas cascas: fachadas, telhados, paredes... Não, Caturrinha não queria cascas: queria o sabor e o perfume. Queria o segredo. Na região do segredo encontrava linguagem, companhia, conversação.
   Na verdade, nunca se preocupou com a maneira de se chegar a este mundo, porque a bem dizer, para ela, não havia diferença bem nítida entre nascer e não nascer. Mas, quando lhe disseram que chegara dentro de uma abóbora, achou a coisa mais absolutamente natural do mundo. Talvez tivesse lamentado vagamente - muito vagamente -  não ter sido num vidro grande de farmácia, reclinada naquela frescura líquida e já vendo as paisagens aparecerem através de curvas paredes amarelas e azuis.
   Mas também isso não era motivo para apreensões nem nostalgias, pois bastava-lhe querer passar a residir nesses lugares incríveis. Habita muitas horas o recesso de um intrincado desenho do tapete, e uma vez descobriu como se pode viver dentro de uma lágrima  equilibrada nas pestanas.
   Inúmeras vezes adormeceu naquele prado verde que se vê no meio da lua, e por onde pasta, movendo a cauda, o cavalinho de S. Jorge. Nesse tempo, sua vida era ainda muito estática: apenas descobria uma nova morada, ali pousava, e ficava entretida. Melhor seria dizer contida em sua distração, como o orvalho na sua forma. Foi o tempo do seu êxtase dentro das cores, das transparências, das texturas. Por acaso já moraste, meu irmão, dentro do anil? dentro da cânfora? na minúscula ilha submersa na escuridão de um caroço de ameixa? Pois esses eram os seus profundos caminhos pensativos.
   Depois em tempos de mais atividade, patinou pelas alamedas das fibras das madeiras, dos veios dos mármores, - e os labirintos que as formigas apenas superficialmente conhecem nas folhas dos cóleos e dos tinhorões não tinham estradas nem túneis que não houvesse percorrido, embora servissem apenas de mapa, e as viagens fossem dar a paragens de uma realidade total, mas sem fim e sem nome: como planetas ainda por localizar.
   Quando diziam que Caturrinha sonhava, ela não entendia bem. Pois como nascer e não-nascer, o sonhar e o não-sonhar nunca lhe apresentaram contrastes ou oposição. Tudo lhe era naturalmente fluido e unido, com pequenos caprichos, de vez em quando, como água que forma bolhas, estrias, mas vai andando, e reabsorve suas pequenas, graciosas, rápidas e gratuitas diversões.
   Naturalmente o circo era o ambiente mais compreensivo de todos. O estranhável é que a humanidade inteira não andasse em trapézios, como as aranhas, e os homens não pudessem torcer o peito para as costas quando entendessem, nem pudessem pular de um telhado para outro, de uma praia para outra praia, de uma estrela para outra estrela. Nesses momentos, quanto todos se espantavam, e batiam palmas e arregalavam os olhos, sentia um certo desprezo melancólico, não se sabe contra quem. Fitava as pessoas que celebravam aquelas habilidades como coisas excepcionais. Ela não as entendia. Positivamente, não entendia as pessoas grandes. E, com certo desdém, também lhe inspirava uma espécie de surda pena.
   Às vezes dizia: "Hoje sou peixe" ou "Agora estou sendo sempre-viva" -  e as pessoas crescidas faziam um muxoxo e resmungavam: "Coisas da Caturrinha." Diziam-no com uma expressão de certa piedade. E ela os achava tão bobos, tão bobos... -  e continuava a mover suas nadadeiras, dóceis, transparentes, como franjas de água, e continuava a crispar num vento invisível as amarelas escamas de suas flores sem morte.
   Houve um tempo em que foi violão. E quando respirava sentia-se toda sonora. Mas ninguém nunca reparou nisso. Morava num guarda-roupa enorme, com o peso e o odor de uns vestidos imemoriais pousados na sua madeira. A qualquer escorregar de uma fímbria, acordavam músicas. E enquanto estava sendo assim violão, em toda a sua plenitude, acontecia perguntar-lhe a professora: "Vamos, Caturrinha, quantos são os reinos da natureza?" "Ah! - dizia -  uma porção..." E punha-se a enumerar, sem pressa: havia o reino dos cavalos de estrela na testa... o reino dos anões de barba verde... o dos sapos mágicos... o dos touros com asas...
   A classe inteira ria. Eram muito estudiosas, aquelas meninas. E a professora passava adiante, não sem alguma consternação: "Ah... esta Caturrinha..." Mas como era a menorzinha de todas, faziam-lhe festas, esticavam-lhe os cachos do cabelo, davam todas as demonstrações de permitir que a sua maluquice prolongasse por muito tempo. Afinal era tão engraçada!
    Mais tarde é que tudo mudou um pouco. Perguntaram-lhe: "Como vai ser a sua casa, quando você se casar?" Ora essa! Dizia: "Translúcida." "Translúcida, como? De vidro?" "De vidro, de pétala, de pálpebra..."
   Não, depois de uma certa idade, todos devemos ter uma certa conveniência com as palavras. Uma criança é uma criança, vá lá, não sabe o que diz. Mas agora, depois de grande, vir uma pessoa dizer com ar de seriedade: "estou viajando em redor de uma vela de cera" - não, isso já é pedantismo ou loucura. Depois de certa idade, é proibido possuir imaginação.
   E as amigas de Caturrinha tiveram casas curiosíssimas - com varandas prateadas, móveis com muitos espelhos, cortinas de muitos feitios, papéis pintados, tapetes como caleidoscópios, colunas como grutas, aquários com peixes dançantes... E nunca nenhuma delas viu a casa que tinha. Sabiam receitas de limpar mármores, de polir madeiras, de tirar manchas de veludo, e nunca descobriram os países soterrados naqueles mármores, as dinastias que desfilavam nos íntimos arabescos daquelas madeiras, as farfalhantes florestas, com plumas e cascatas, aprisionadas nos seus veludos.
   Nunca dormiram dentro de seus pianos, lá onde a música ainda é um acorde de aromas de madeira e metal. Nunca esperaram o entardecer com o rosto encostado a um vidro, vendo o diagrama da vida na névoa da respiração. E perguntavam, compadecidas: "E você, Caturrinha?" "Eu? Agora estou morando dentro de uma palavra. É maravilhosa, tem quinze declinações." E começa a decliná-la, exatamente como fazem os contorcionistas nos circos: um músculo que retesa, outro que se afrouxa, um joelho que sobe, um pé que aparece noutro lugar, a mão que tateia procurando solo, os olhos que vão surgindo, rampantes, como dois sáurios... E advertia: "mas ainda faltam outros casos: o adverbial, o prossecutivo, o mutativo..."
   E as amigas ficavam imóveis, um pouco. Depois falavam em comprar outras cadeiras, mudar as cortinas, arranjar nova casa... Porque as casas são pequenas ou grandes, caras ou baratas, em lugares elegantes ou em bairros sem distinção... "Não acha, Caturrinha?"
   Mas os seus pontos de vista eram sempre esquisitos. "Bem, é conforme... Por exemplo, as nozes são um pouco escuras, mas têm aqueles tabiques muito delicados, e aqueles marfins macios e crespos... O ovo já é mais translúcido, e muito doce de percorrer, de uma câmara para outra... Pensando bem, prefiro o caramujo. É uma usina de sonho, e sua rampa é firme como mármore e suave como seda..."
   Todos chegaram, desse modo, à conclusão de que Caturrinha não levava nada a sério. Uma vez que não era louca, e isso positivamente não era, só podia dizer aquilo por gracejo. E era uma pena,  que estivesse sempre gracejando assim...
   Pois as amigas de Caturrinha pensavam com aquela gravidade da criada que lhe ponderou: "Madama, eu, pra falar a verdade, sou arrumadeira, mas só gosto de me empregar em apartamento que tem entrada de mármore e elevador dourado..." E ela - meus irmãos! -  estava morando justamente naquela época, nas letras do alfabeto hebraico! - que lhe pareceu muito plástico, porque tinha elefante, casa, caramelo, porta, água, peixe... - era um longo bazar, no qual se podia ir sonhando longamente, de soleira em soleira...

(Cecília Meireles. Rio de Janeiro, A Manhã, "Letras e Artes", 9 de fevereiro de 1947)


*Caturrinha (caturro): teimosa, obstinada.
** Destaque às partes que nos causam mais embasbacamento. 

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