segunda-feira, 10 de outubro de 2016

A secreta experiência das coisas.

Estava eu procurando um texto chamado "Da solidão" de Cecília Meireles. O caminho que me levou a querer revisitar a crônica foi uma outra solidão: a solidão do ensaísta Michel de Montaigne que, há algumas semanas, tive o prazer de visitar e amar. 
Pensei que talvez pudesse ser interessante colocar uma solidão na frente da outra. E deixar meu ser pequenino lá, observando a conversa solitária dos dois artistas. 
É bem possível que o resultado da soma da solidão de Cecília e de Montaigne  não seja exatamente um diálogo. Como o assunto aqui não é matemático, o que  nos faz erguer as mãos aos céus, entendemos o encontro como uma mútua apreciação de dois monólogos silentes. As palavras aqui se põem quietas e contemplativas, posto que as reflexões emanadas delas são infinitamente maiores do que seus sons, suas formas ou suas caras.

Mas, estava eu procurando o texto "Da solidão" de Cecília Meireles...

O livro onde a crônica se encontra se chama Escolha seu sonho. "Da solidão" se situa no logradouro página 39, à direita de "Vozes de Humaitá" e a quatro quarteirões laudas de "As meninas dos Hospitais". 
Dado o estilo da redondeza, não é de se estranhar a natureza erma do texto "Da solidão"... Pois para se ouvir as tais vozes de Humaitá (crônica vizinha) há que se fazer silêncio! E ainda, o mesmo silêncio é solicitado quando estamos próximos às paginas onde se encontra "As meninas dos hospitais" ! Pois bem...

Estava eu procurando "Da solidão" e, felizmente, encontrei a beleza: 

"Tudo palpita em redor de nós, e é como um dever de amor aplicarmos o ouvido, a vista, o coração a essa infinidade de formas naturais ou artificiais que encerram seu segredo, suas memórias, suas silenciosas experiências."


Depois dessas frases, minhas pálpebras ergueram-se e depois baixaram, enquanto eu ia deixando meu ser pequenino lá, a se observar pelas palavras prenhas de pensamento (paráfrase de Guimarães Rosa?) como são as  de Cecília Meireles.

"_ As silenciosas experiências das formas..." Pensava lenta e silenciosamente comigo... 
Foi quando encontrei o "Manual do Motorista" da minha avó, guardadinho bem no meio do Escolha seu sonho. E a primeira divagação foi interrompida para dar lugar à segunda:
"_Com tantos silvos, a contracapa do antigo manual mais parece o "Cota zero" do Drummond!" Pensava outra vez lenta e silenciosamente comigo...






"Tudo palpita em redor de nós"... 

Meu Deus! Súbito, constatei que os objetos têm mesmo secretas experiências e que ainda por cima fazem aniversário! 

O nome da minha avó grafado com sua própria letra noticiava: 

10/10/1968

Isso queria dizer que, há exatamente 48 anos, minha avó materna decidia estudar as regras do trânsito para poder tirar carta! 

Orgulho dessa avó que, aos 53 anos de idade,  seria futura motorizada no passado! (Seu exame aconteceu em janeiro de 1969)

Revisitando o manual em 10 de outubro de 2016, no aniversário de sua decisão, recordei sempre ter ouvido que minha avó gostava muito de ler! Professora, leitora, motorista independente, certamente ela deve ter trafegado por muitas páginas logradouros! Se dirigisse pelas ruas de Escolha seu sonho, tomaria muito cuidado no cruzamento entre "Da solidão" com a "Vozes de Humaitá". Ética, 
respeitaria os doentes e os convalescentes de "As meninas dos Hospitais". Perto de suas dependências, ela jamais teria acionado a buzina.










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